Clipping

Sachs: Por uma Europa livre dos EUA

Um dos grandes analistas da geopolítica contemporânea adverte: desde 1991, Washington cultiva sonho insano de governar o mundo. UE viu-se sócia, e abriu mão da política externa. Agora paga o preço. Para deixar a dependência, pode entender-se com Pequim e Moscou

Por: Jeffrey D. Sachs | Tradução: Antonio Martins | Imagem: Yuki Iwamura

Introdução

Muito obrigado, e obrigado a todos pela oportunidade de estarmos e pensarmos juntos. É um momento complicado, de rápidas mudanças e muito perigoso. Por isso, precisamos de clareza de pensamento. Estou especialmente interessado em nossa conversa, tentarei ser o mais sucinto e claro possível. Tenho acompanhado de perto os acontecimentos na Europa Oriental, na antiga União Soviética, na Rússia e na Ucrânia nos últimos 36 anos. Fui consultor do governo polonês em 1989, da equipe econômica do presidente Gorbachev em 1990 e 1991, da equipe econômica do presidente Yeltsin entre 1991 e 1993, e da equipe econômica do presidente Kuchma na Ucrânia entre 1993 e 1994. Ajudei a introduzir a moeda estoniana. Ajudei vários países da antiga Iugoslávia, especialmente a Eslovênia. Após os incidentes na Praça Maidan, o novo governo ucraniano me pediu para ir a Kiev, me levaram para percorrer a praça e observei muitas coisas em primeira mão. Tenho mantido contato com líderes russos há mais de 30 anos. Também conheço de perto os líderes políticos americanos. Nossa ex-secretária do Tesouro, Janet Yellen, foi minha professora de macroeconomia há 52 anos. Somos amigos há meio século. Conheço essas pessoas.

Digo isso porque o que quero explicar do meu ponto de vista não é de segunda mão. Não é ideologia. É o que vi com meus próprios olhos e vivenciei durante esse período. Quero compartilhar com vocês minha compreensão dos eventos que aconteceram na Europa em muitos contextos, e incluirei não apenas a crise na Ucrânia, mas também a Sérvia em 1999, as guerras no Oriente Médio, incluindo Iraque e Síria, as guerras na África, incluindo Sudão, Somália e Líbia. São, em grande parte, o resultado de políticas americanas profundamente equivocadas. O que vou dizer talvez os surpreenda, mas falo a partir da experiência e do conhecimento desses eventos.

1- A política externa dos Estados Unidos

Trata-se de guerras que os Estados Unidos lideraram e provocaram, e isso tem sido assim por mais de 30 anos. Os Estados Unidos chegaram à conclusão, especialmente durante 1990-91 e com o fim da União Soviética, de que agora eles governam o mundo e que não precisam prestar atenção às opiniões, limites, preocupações, pontos de vista sobre segurança, obrigações internacionais ou qualquer quadro das Nações Unidas de ninguém. Lamento dizer isso tão claramente, mas quero que entendam.

Em 1991, me esforcei muito para conseguir ajuda financeira para Gorbachev1. Recentemente, li o memorando arquivado da discussão que ocorreu no Conselho de Segurança Nacional sobre minha proposta em 3 de junho de 1991, e li pela primeira vez como a Casa Branca a descartou completamente e, basicamente, riu do meu pedido de que os Estados Unidos ajudassem a União Soviética com a estabilização financeira e com ajuda financeira para realizar suas reformas. O memorando documenta que o governo dos Estados Unidos decidiu fazer o mínimo para evitar o desastre, mas apenas o mínimo2. Decidiram que não era tarefa dos Estados Unidos ajudar. Muito pelo contrário3.

Quando a União Soviética se dissolveu em 1991, a opinião se tornou ainda mais exagerada. E posso citar capítulos e versículos, mas a opinião era que nós [EUA] dirigíamos o espetáculo. Cheney, Wolfowitz e muitos outros nomes que vocês devem ter conhecido acreditavam literalmente que este era agora um mundo americano e que faríamos o que quiséssemos. Limparíamos a antiga União Soviética. Eliminaríamos todos os aliados remanescentes da era soviética. Países como Iraque, Síria e outros desapareceriam. E temos experimentado essa política externa essencialmente por 33 anos. A Europa pagou um preço alto por isso porque a UE não teve nenhuma política externa que eu possa entender durante esse período. Não há voz, não há unidade, não há clareza, não há interesses europeus, apenas lealdade americana.

Houve momentos em que houve desacordos, e acho que foram desacordos maravilhosos. O último desacordo relevante foi em 2003, na véspera da guerra do Iraque, quando a França e a Alemanha disseram que não apoiavam que os Estados Unidos contornassem o Conselho de Segurança da ONU para essa guerra. O conflito foi diretamente articulado por Netanyahu e seus colegas do Pentágono americano4. Não digo que fosse um vínculo ou uma reciprocidade. Estou dizendo que foi uma guerra realizada por Israel. Foi uma guerra que Paul Wolfowitz e Douglas Feith coordenaram com Netanyahu. E essa foi a última vez que a Europa teve voz. Falei com os líderes europeus na época e eles foram muito claros, e foi maravilhoso ouvir sua oposição a uma guerra inaceitável. A Europa perdeu completamente sua voz depois disso, mas especialmente em 2008. O que aconteceu após 1991, e para nos levar a 2008, foi que os Estados Unidos decidiram que a unipolaridade significava que a OTAN se expandiria de algum lugar entre Bruxelas e Vladivostok, passo a passo.

2- Expansão da OTAN

A expansão da OTAN para o leste não teria fim. Seria o mundo unipolar dos Estados Unidos. Se você jogou o jogo de tabuleiro Risk quando criança, como eu, essa é a ideia dos Estados Unidos: ter suas peças em cada parte do tabuleiro. Qualquer lugar sem uma base militar americana é basicamente um inimigo. A neutralidade é uma palavra ruim no léxico político americano.

Neutralidade é talvez a palavra mais suja de acordo com a mentalidade americana. Se você é um inimigo, sabemos que você é. Se você é neutro, você é um subversivo, porque na verdade você está contra nós, mas não nos diz. Você está apenas fingindo ser neutro. Então, essa era efetivamente a mentalidade, e a decisão foi tomada formalmente em 1994, quando o presidente Clinton assinou a expansão da OTAN para o leste.

Neutralidade é talvez a palavra mais suja de acordo com a mentalidade americana

Vocês se lembrarão que em 7 de fevereiro de 1990, Hans-Dietrich Genscher e James Baker III falaram com Gorbachev. Genscher deu uma conferência de imprensa depois, onde explicou que a OTAN não se moveria para o Leste. A Alemanha e os EUA não se aproveitariam da dissolução do Pacto de Varsóvia. Por favor, entendam que esse compromisso foi feito em um contexto jurídico e diplomático, não em um contexto casual. Esses compromissos foram fundamentais para as negociações para terminar a Segunda Guerra Mundial que abriram caminho para a reunificação alemã.

Chegou-se a um acordo segundo o qual a OTAN não se moveria nem um centímetro para o leste5. Foi explícito e está em inúmeros documentos. Basta procurar no Arquivo de Segurança Nacional da Universidade George Washington para encontrar dezenas de documentos6. É um site chamado “O que Gorbachev ouviu sobre a OTAN”. Dêem uma olhada, por favor, porque tudo o que os EUA dizem a vocês sobre essa promessa é mentira, mas os arquivos são perfeitamente claros.

Assim, em 1994, Clinton tomou a decisão de expandir a OTAN até a Ucrânia. Este é um projeto de longo prazo dos Estados Unidos, que não se deve a um ou outro governo. É um projeto do governo dos Estados Unidos que começou há mais de 30 anos. Em 1997, Zbigniew Brzezinski escreveu O Grande Tabuleiro de Xadrez, no qual descreve a expansão da OTAN para o leste.

Esse livro não é apenas uma reflexão do Sr. Brzezinski, mas uma apresentação ao público de decisões já tomadas pelo governo dos EUA, que é como funciona um livro como esse. O livro descreve a expansão da Europa e da OTAN para o leste como eventos simultâneos e conjuntos. E há um bom capítulo nesse livro que pergunta o que a Rússia fará à medida que a Europa e a OTAN se expandem para o leste.

Eu conhecia pessoalmente Zbig Brzezinski. Ele foi muito gentil comigo. Eu assessorava a Polônia e ele me ajudou muito. Ele também era um homem inteligente, e ainda assim ele estava errado sobre tudo em 1997. Ele escreveu detalhadamente por que a Rússia não poderia fazer nada além de concordar com a expansão para o leste da OTAN e da Europa7. Na verdade, ele diz que a expansão para o leste da Europa e não apenas da Europa, mas da OTAN, era um plano americano, um projeto. E Brzezinski explica que a Rússia nunca se alinhará com a China. É impensável. A Rússia nunca se alinhará com o Irã.

Segundo Brzezinski, a Rússia não tem outra vocação além da europeia. Então, à medida que a Europa se move para o leste, a Rússia não pode fazer nada a respeito. Isso é o que outro estrategista americano afirma. Há alguma dúvida sobre por que estamos em guerra o tempo todo? Porque uma característica dos Estados Unidos é que sempre “sabemos” o que nossos homólogos vão fazer, e sempre estamos errados! E uma das razões pelas quais sempre estamos errados é que, na teoria dos jogos não cooperativos praticada pelos estrategistas americanos, na verdade não se fala com o outro lado. Simplesmente se sabe qual é a estratégia do outro lado. Isso é maravilhoso. Economiza muito tempo. Simplesmente não se precisa de diplomacia.

3- A Estratégia do Mar Negro

Assim, esse projeto começou a sério em 1994 e tivemos uma continuidade da política governamental por 30 anos, até o passado 12 de fevereiro, talvez8. Um projeto de três décadas. Ucrânia e Geórgia foram as chaves do projeto. Por quê? Porque os EUA aprenderam tudo o que sabem com os britânicos.

Nós somos o aspirante a Império Britânico. E o que o Império Britânico entendeu em 1853, com Lord Palmerston [junto com Napoleão III], é que se cerca a Rússia no Mar Negro e se nega à Rússia o acesso ao Mediterrâneo Oriental. O que estamos vendo é um projeto americano para fazer o mesmo no século XXI. A ideia dos Estados Unidos era que Ucrânia, Romênia, Bulgária, Turquia e Geórgia estivessem todas na OTAN, o que privaria a Rússia de qualquer status internacional ao bloquear o Mar Negro e, essencialmente, neutralizar a Rússia como pouco mais que uma potência local. Brzezinski é claro sobre essa geografia.

Depois de Palmerston e antes de Brzezinski, é claro, estava Halford Mackinder em 1904: “Quem governa o Leste Europeu, governa o coração do continente; quem governa o coração do continente, governa a ilha-mundo; quem governa a ilha-mundo, governa o mundo”9.

O sistema político americano é um sistema de imagem

Conheço os presidentes e suas equipes. Nada mudou muito de Clinton para Bush Jr. para Obama para Trump e para Biden. Talvez tenham piorado passo a passo. Biden foi o pior na minha opinião. Talvez isso também se deva ao fato de que ele não estava em sã consciência nos últimos dois anos. Digo isso a sério, não como um comentário sarcástico. O sistema político americano é um sistema de imagem. É um sistema de manipulação da mídia todos os dias. É um sistema de relações públicas. Você pode ter um presidente que basicamente não funciona e mantê-lo no poder por dois anos e apresentá-lo à reeleição. O problema é que ele teve que ficar em um palco por 90 minutos sozinho, e aí acabou. Se não fosse por esse problema técnico, ele teria seguido em frente com sua candidatura, mesmo que estivesse dormindo depois das quatro da tarde. Então, essa é a realidade. Todo mundo aceita isso. É de má educação dizer o que estou dizendo porque não dizemos a verdade sobre quase nada neste mundo neste momento.

Assim, esse projeto se prolongou desde os anos 90. O bombardeio de Belgrado durante 78 dias seguidos em 1999 foi parte disso. Dividir esse país quando as fronteiras são “sagradas”, não é? Exceto no caso do Kosovo, é claro. As fronteiras são sagradas, exceto quando os EUA as mudam. Dividir o Sudão foi outro projeto relacionado a isso. Pensemos na rebelião do Sudão do Sul. Aconteceu simplesmente porque os sul-sudaneses se rebelaram? Ou devo dar a eles o manual da CIA?

Por favor, entendamos como adultos do que se trata. As campanhas militares são caras. Exigem equipamento, treinamento, bases, inteligência, finanças. Esse apoio vem das grandes potências, não de insurreições locais. O Sudão do Sul não derrotou o Sudão em uma batalha tribal. Derrotar o Sudão foi um projeto dos Estados Unidos. Eu ia frequentemente a Nairóbi e me encontrava com militares americanos, senadores ou outras pessoas com um “profundo interesse” na política interna do Sudão. Essa guerra era parte do jogo da unipolaridade americana.

4- A política externa dos Estados Unidos e a expansão da OTAN

E assim, como vocês sabem, a expansão da OTAN começou em 1999 com Hungria, Polônia e República Tcheca. A Rússia não estava muito feliz com isso, mas esses eram países que ainda estavam longe de suas fronteiras. A Rússia protestou, mas, é claro, sem nenhum resultado. Então, George Bush Jr. assumiu o poder. Quando ocorreram os ataques de 11 de setembro, o presidente Putin prometeu todo o seu apoio aos Estados Unidos. E então, por volta de 20 de setembro de 2001, os Estados Unidos decidiram que lançariam sete guerras em cinco anos.

Você pode ouvir o general Wesley Clark falar sobre isso em um vídeo10. Ele foi o comandante supremo da OTAN em 1999. Ele foi ao Pentágono por volta de 20 de setembro de 2001. Entregaram-lhe um papel que explicava a possibilidade de sete guerras escolhidas pelos Estados Unidos. Na verdade, essas eram as guerras de Netanyahu.

O plano do governo dos Estados Unidos consistia em parte em eliminar os antigos aliados soviéticos e em parte em eliminar os apoiadores do Hamas e do Hezbollah. A ideia de Netanyahu era e é que haverá um único Estado em toda a Palestina anterior a 1948. Sim, apenas um Estado. Será Israel. Israel controlará todo o território desde o rio Jordão até o mar Mediterrâneo. E se alguém se opuser, nós os derrubaremos. Bem, não exatamente Israel, mas mais especificamente nosso amigo, os Estados Unidos. Essa tem sido a política americana até o presente. Não sabemos se mudará. Agora, o único problema é que talvez os Estados Unidos “se apoderem de Gaza” [segundo o presidente Trump] em vez de Israel.

A ideia de Netanyahu existe há pelo menos 25 anos. Remonta a um documento chamado “Clean Break” que Netanyahu e sua equipe política americana elaboraram em 1996 para acabar com a ideia da solução de dois Estados. Você também pode encontrar esse documento na internet11.

Portanto, esses são projetos americanos de longo prazo. É um erro perguntar: “Isso é sobre Clinton? É sobre Bush? É sobre Obama?”. Essa é a maneira tediosa de considerar a política americana, como um jogo diário ou anual. No entanto, isso não é a política americana.

Após 1999, a próxima rodada de expansão da OTAN ocorreu em 2004, com mais sete países: os três Estados Bálticos, Romênia, Bulgária, Eslovênia e Eslováquia. Naquela época, a Rússia estava bastante irritada. Essa segunda onda de expansão da OTAN foi uma violação total da ordem do pós-guerra acordada no momento da reunificação alemã. Em essência, foi uma manobra fundamental, ou uma deserção, dos Estados Unidos em relação a um acordo de cooperação com a Rússia.

Essa segunda onda de expansão da OTAN foi uma violação total da ordem do pós-guerra

Como todos se lembram, de 14 a 16 de fevereiro passado, celebramos a Conferência de Segurança de Munique. O presidente Putin foi a essa mesma conferência em 2007 para dizer: “Chega, já é suficiente”. É claro que os Estados Unidos não o ouviram12.

Em 2008, os Estados Unidos impuseram à Europa seu projeto de longa data de expandir a OTAN para a Ucrânia e a Geórgia. Este é um projeto de longo prazo. Ouvi o Sr. Saakashvili na cidade de Nova York na primavera de 2008, quando ele falou no Conselho de Relações Exteriores. Ele nos disse que a Geórgia está no coração da Europa e, como tal, se juntaria à OTAN. Saí e liguei para minha esposa e disse: “Esse homem está louco; ele vai explodir seu país”. Um mês depois, estourou uma guerra entre a Rússia e a Geórgia, na qual a Geórgia foi derrotada. Os últimos acontecimentos em Tbilisi também não ajudam o país, com seus parlamentares europeus indo para lá para provocar protestos. Isso não salva a Geórgia; isso a destrói, a destrói completamente.

Em 2008, como todos sabem, nosso ex-diretor da CIA, William Burns, que na época era embaixador dos Estados Unidos na Rússia, enviou um longo cabo diplomático à secretária de Estado Condoleezza Rice, que tinha o famoso título “Nyet significa Nyet”13. A mensagem de Burns era que toda a classe política russa se opunha à expansão da OTAN, não apenas o presidente Putin.

Só Julian Assange nos contou sobre o cabo. Acreditem em mim, nem nosso governo nem nossos principais jornais disseram uma única palavra ao povo americano sobre esse assunto. Então, temos que agradecer a Julian Assange pelo memorando, que podemos ler em detalhes.

Como você sabe, Viktor Yanukovich foi eleito presidente da Ucrânia em 2010 com o argumento da neutralidade da Ucrânia. A Rússia não tinha nenhum interesse territorial ou qualquer plano na Ucrânia. Eu sei. Eu estive lá de vez em quando durante esses anos. O que a Rússia estava negociando durante 2010 era um contrato de arrendamento de 25 anos até 2042 para a base naval de Sebastopol. Isso é tudo. Não havia nenhuma exigência russa pela Crimeia ou pelo Donbass. Nada disso. A ideia de que Putin está reconstruindo o império russo é propaganda infantil. Desculpe.

Se alguém conhece a história cotidiana e anual, isso é uma bobagem. No entanto, as bobagens parecem funcionar melhor do que as dos adultos. Assim, não houve nenhuma demanda territorial antes do golpe de 2014. No entanto, os Estados Unidos decidiram que Yanukovich tinha que ser derrubado porque ele era a favor da neutralidade e se opunha à expansão da OTAN. Isso se chama operação de mudança de regime.

Desde 1947, os Estados Unidos realizaram cerca de cem operações de mudança de regime, muitas delas em seus países [dirigindo-se aos eurodeputados] e muitas outras em todo o mundo14. É isso que a CIA faz para ganhar a vida. Por favor, saibam que é um tipo de política externa muito incomum. No governo americano, se você não gosta do outro lado, você não negocia com ele, você tenta derrubá-lo, preferencialmente de forma encoberta. Se não funcionar de forma encoberta, você o faz abertamente. Você sempre diz que não é culpa nossa. Eles são os agressores. Eles são o outro lado.

Eles são “Hitler”. Isso surge a cada dois ou três anos. Seja Saddam Hussein, Assad ou Putin, é muito conveniente. Essa é a única explicação de política externa que é dada ao povo americano. Bem, estamos enfrentando Munique 1938. Não podemos falar com o outro lado. Eles são inimigos maus e implacáveis. Esse é o único modelo de política externa que ouvimos de nosso governo e da mídia. Eles repetem isso integralmente porque estão completamente subornados pelo governo dos Estados Unidos.

5- A revolução do Maidan e suas consequências

Em 2014, os Estados Unidos trabalharam ativamente para derrubar Yanukovich. Todo mundo conhece a chamada telefônica interceptada entre minha colega da Universidade de Columbia, Victoria Nuland, e o embaixador dos Estados Unidos, Peter Pyatt. Não há prova melhor. Os russos interceptaram sua chamada e a colocaram na internet. Ouçam-na15.

É fascinante. Ao fazer isso, todos eles conseguiram promoções na administração Biden. Esse é o trabalho. Quando o Maidan ocorreu, me ligaram pouco depois. “Professor Sachs, o novo primeiro-ministro ucraniano quer vê-lo para falar sobre a crise econômica”. Então, voei para Kiev e me levaram para passear pelo Maidan. E me contaram como os Estados Unidos pagaram dinheiro a todas as pessoas que estavam ao redor do Maidan, a revolução “espontânea” da dignidade.

Senhoras e senhores, por favor, como é possível que todos esses meios de comunicação ucranianos aparecessem de repente no momento da batalha do Maidan? De onde veio toda essa organização? De onde vieram todos esses ônibus? De onde veio toda essa gente? Vocês estão brincando? Isso é um esforço organizado. E não é segredo, exceto talvez para os cidadãos da Europa e dos Estados Unidos. Todos os outros entendem perfeitamente. Depois do golpe, vieram os acordos de Minsk, especialmente Minsk II, que, a propósito, foi baseado na autonomia do Tirol do Sul para os alemães étnicos na Itália. Os belgas também podem se identificar muito bem com Minsk II, já que exigia a autonomia e os direitos linguísticos dos falantes de russo no leste da Ucrânia. Minsk II foi apoiado unanimemente pelo Conselho de Segurança da ONU16. No entanto, os Estados Unidos e a Ucrânia decidiram que não seria aplicado. Alemanha e França, os garantidores do processo da Normandia, também permitiram que fosse ignorado. Essa rejeição de Minsk II foi outra ação unipolar direta dos Estados Unidos, na qual a Europa, como sempre, desempenhou um papel subsidiário completamente inútil, apesar de ser garante do acordo.

Os democratas se tornaram ao longo do tempo completos belicistas

Trump venceu as eleições de 2016 e depois ampliou os envios de armas para a Ucrânia. Houve muitos milhares de mortos nos bombardeios da Ucrânia no Donbass. O acordo de Minsk II não foi implementado. Então, Biden assumiu o cargo em 2021. Eu esperava algo melhor, mas me senti profundamente decepcionado mais uma vez. Eu costumava ser membro do Partido Democrata. Agora não sou membro de nenhum partido porque, de qualquer forma, ambos são iguais. Os democratas se tornaram ao longo do tempo completos belicistas, e não houve uma única voz no partido que pedisse paz. Assim como a maioria de seus parlamentares.

No final de 2021, Putin colocou sobre a mesa um último esforço em dois rascunhos de acordos de segurança, um com a Europa e outro com os Estados Unidos. O rascunho do acordo Rússia-EUA foi colocado sobre a mesa em 15 de dezembro de 2021.

Depois disso, tive uma conversa telefônica de uma hora com Jake Sullivan (o conselheiro de Segurança Nacional) na Casa Branca, implorando: “Jake, evite a guerra. Você pode evitá-la. Tudo o que os Estados Unidos têm que fazer é dizer: ‘A OTAN não se expandirá para a Ucrânia’”. E ele me respondeu: “Oh, a OTAN não se expandirá para a Ucrânia. Não se preocupe com isso”.

Eu disse: “Jake, diga isso publicamente”. “Não. Não. Não. Não podemos dizer isso publicamente”. Eu disse: “Jake, você vai ter uma guerra por algo que nem vai acontecer?”. Ele disse: “Não se preocupe, Jeff. Não haverá guerra”. Essas não são pessoas muito inteligentes. Eu digo a você: se eu puder dar minha opinião honesta, elas não são pessoas muito inteligentes. Elas falam consigo mesmas. Elas não falam com mais ninguém. Elas jogam a teoria dos jogos não cooperativos, segundo a qual você não fala com a outra parte. Você simplesmente faz sua estratégia. Essa é a essência da teoria dos jogos não cooperativos. Não é uma teoria de negociação. Não é uma teoria de pacificação. É uma teoria unilateral, não cooperativa, se você conhece a teoria dos jogos formal.

É isso que eles fazem. Esse tipo de teoria dos jogos começou [em aplicação] na Corporação RAND. É nisso que eles ainda jogam. Em 2019, há um artigo da RAND, “Extending Russia: Competing from Advantageous Ground”17. Incrivelmente, o artigo, de domínio público, pergunta como os Estados Unidos deveriam irritar, antagonizar e enfraquecer a Rússia. Essa é literalmente a estratégia. Estamos tentando provocar a Rússia, tentando fazer com que a Rússia se desintegre, talvez ter uma mudança de regime, talvez distúrbios, talvez uma crise econômica.

Isso é o que na Europa vocês chamam de aliado. Vocês estão brincando? Então, lá estava eu, em pé no frio glacial, com minha frustrante ligação telefônica com Sullivan . Casualmente, eu estava tentando passar um dia esquiando. “Oh, não haverá guerra, Jeff”. Sabemos o que aconteceu depois: a Administração Biden se recusou a negociar a expansão da OTAN. A ideia mais estúpida da OTAN é a chamada política de portas abertas, baseada no artigo dez do Tratado da OTAN (1949). A OTAN se reserva o direito de ir aonde quiser, desde que o governo anfitrião concorde, sem que nenhum vizinho, como a Rússia, possa dizer algo a respeito.

Bem, eu digo aos mexicanos e canadenses: “Não tentem isso”. Vocês sabem, Trump poderia querer se apoderar do Canadá. Então, o governo canadense poderia dizer à China: “Por que não constroem uma base militar em Ontário?”. Eu não recomendaria isso. Os Estados Unidos não diriam: “Bem, é uma porta aberta. Isso é assunto do Canadá e da China, não nosso”. Os Estados Unidos invadiriam o Canadá.

No entanto, os adultos, mesmo na Europa, neste Parlamento, na OTAN, na Comissão Europeia, repetem o absurdo mantra de que a Rússia não tem voz nem voto na expansão da OTAN. Isso é uma bobagem. Nem mesmo é geopolítica infantil. É simplesmente não pensar em nada. Então, a guerra na Ucrânia se intensificou em fevereiro de 2022, quando a administração Biden se recusou a iniciar negociações sérias.

6- A guerra na Ucrânia e o controle das armas nucleares

Qual era a intenção de Putin na guerra? Posso dizer a vocês qual era sua intenção: forçar Zelensky a negociar a neutralidade. Isso aconteceu poucos dias após o início da invasão. Vocês devem entender esse ponto básico, não a propaganda que se escreve sobre a invasão e que afirma que o objetivo da Rússia era conquistar a Ucrânia com algumas dezenas de milhares de tropas.

Vamos, senhoras e senhores. Por favor, entendam algo básico. A ideia da invasão russa era manter a OTAN fora da Ucrânia. E o que é a OTAN, na verdade? É o exército americano, com seus mísseis, seus desdobramentos da CIA e tudo mais. O objetivo da Rússia era manter os EUA longe de sua fronteira. Por que a Rússia está tão interessada nisso? Pensem que, se a China ou a Rússia decidissem ter uma base militar no Rio Grande ou na fronteira canadense, não apenas os Estados Unidos ficariam assustados, mas teríamos uma guerra em cerca de dez minutos. Quando a União Soviética tentou isso em Cuba em 1962, o mundo quase terminou em um armagedom nuclear.

Tudo isso foi severamente amplificado porque os EUA abandonaram unilateralmente o Tratado de Mísseis Antibalísticos em 2002 e puseram fim ao marco de controle de armas nucleares de relativa estabilidade. É extremamente importante entender isso. O marco de controle de armas nucleares se baseia, em grande parte, em tentar dissuadir um primeiro ataque [de decapitação]. O Tratado ABM foi um componente crítico dessa estabilidade. Os EUA abandonaram unilateralmente o Tratado ABM em 2002. Isso encheu a Rússia de fúria. Portanto, tudo o que descrevi sobre a expansão da OTAN ocorreu no contexto da destruição, pelos EUA, do marco nuclear. A partir de 2010, os EUA começaram a instalar sistemas de mísseis antibalísticos Aegis na Polônia e depois na Romênia. A Rússia não gosta disso.

Uma das questões discutidas em dezembro de 2021 e janeiro de 2022 foi se os EUA se reservavam o direito de instalar sistemas de mísseis na Ucrânia. Segundo o ex-analista da CIA Ray McGovern, Blinken disse a Lavrov em janeiro de 2022 que os EUA se reservavam o direito de instalar sistemas de mísseis na Ucrânia.

Agora os EUA querem instalar sistemas de mísseis de alcance intermediário na Alemanha

Esse é, queridos amigos, seu suposto aliado. E agora os EUA querem instalar sistemas de mísseis de alcance intermediário na Alemanha. Lembrem-se de que os EUA abandonaram o tratado INF [Tratado sobre Forças Nucleares de Alcance Intermediário] em 2019. Neste momento, não existe um marco de armas nucleares18. Basicamente, nenhum.

Quando Zelensky disse, alguns dias após a invasão russa, que a Ucrânia estava disposta a ser neutra, estava sendo alcançado um acordo de paz. Conheço os detalhes disso porque conversei detalhadamente com negociadores e mediadores-chave e aprendi muito com as declarações públicas de outros. Pouco após o início das negociações em março de 2022, um documento foi trocado entre as partes que o presidente Putin havia aprovado e que Lavrov havia apresentado. Isso estava sendo gerenciado pelos mediadores turcos. Eu voei para Ancara na primavera de 2022 para ouvir em primeira mão e em detalhes o que aconteceu na mediação. O resultado final é este: a Ucrânia se afastou, unilateralmente, de um acordo próximo.

(*19)

7- O fim da guerra na Ucrânia

Por que a Ucrânia se retirou das negociações? Porque os EUA ordenaram e porque o Reino Unido acrescentou a cereja no bolo ao enviar BoJo [Boris Johnson] a Kiev no início de abril para levantar o mesmo ponto. Keir Starmer acabou sendo ainda pior, mais belicista. É inimaginável, mas é verdade. Boris Johnson explicou que o que está em jogo aqui é nada menos que a hegemonia ocidental. Não a Ucrânia, mas a hegemonia ocidental. Michael von der Schulenberg e eu nos reunimos no Vaticano com um grupo de especialistas na primavera de 2022 e escrevemos um documento no qual explicamos que nada de bom pode sair de uma guerra contínua19. Nosso grupo argumentou energicamente, mas em vão, que a Ucrânia deveria negociar imediatamente, porque os atrasos significarão mortes em massa, risco de escalada nuclear e possivelmente uma perda total da guerra.

Eu não mudaria uma única palavra do que escrevemos então. Não havia nada de errado naquele documento. Desde que os EUA convenceram a Ucrânia a não participar das negociações, talvez um milhão de ucranianos tenham morrido ou ficado gravemente feridos. E os senadores americanos, que são tão desagradáveis e cínicos quanto se pode imaginar, dizem que isso é um gasto maravilhoso de dinheiro americano porque nenhum americano morre. É uma guerra por procuração pura. Um de nossos senadores do estado vizinho de Nova York, Richard Blumenthal, de Connecticut, disse isso em voz alta. Mitt Romney também disse em voz alta. É o melhor dinheiro que os EUA podem gastar. Nenhum americano morre. É irreal.

Agora, para voltar ao presente, o projeto americano na Ucrânia falhou. A ideia central do projeto desde o início foi que a Rússia se renderia. A ideia central desde o início foi que a Rússia não pode resistir, como argumentou Zbigniew Brzezinski em 1997. Os americanos pensaram que os EUA tinham a faca e o queijo na mão.

Os EUA vencerão porque os enganaremos. Os russos não vão lutar de verdade. Os russos vão se mobilizar de verdade. Vamos implantar a “opção nuclear” econômica de excluir a Rússia do SWIFT. Isso destruirá a economia. Nossas sanções farão a Rússia se ajoelhar. Os HIMARS acabarão com eles. Os ATACMS, os F-16, acabarão com eles. Honestamente, ouvi esse tipo de conversa por mais de 50 anos. Nossos líderes de segurança nacional disseram bobagens por décadas.

Eu implorei aos ucranianos que permanecessem neutros, que não ouvissem os americanos. Repeti a eles o famoso adágio de Henry Kissinger: ser inimigo dos EUA é perigoso, mas ser amigo é fatal. Permitam-me repetir isso para a Europa: ser inimigo dos EUA é perigoso, mas ser amigo é fatal.

8- O governo Trump

Permitam-me terminar com algumas palavras sobre o presidente Donald Trump. Trump não quer jogar uma mão perdedora. É por isso que é provável que Trump e o presidente Putin concordem em pôr fim à guerra. Mesmo que a Europa continue com seu belicismo, isso não importará. A guerra está terminando. Então, por favor, tirem isso de suas cabeças. Por favor, digam a seus colegas que “acabou”. Acabou porque Trump não quer se agarrar a um perdedor. O primeiro a ser salvo com as negociações que estão ocorrendo agora é a Ucrânia. O segundo é a Europa.

Nos últimos dias, seu mercado de ações subiu devido às “horríveis notícias” sobre negociações e uma possível paz. Sei que essa perspectiva de uma paz negociada foi recebida com absoluto horror nessas câmaras, mas é a melhor notícia que poderiam receber. Tentei entrar em contato com alguns dos líderes europeus. Disse a eles para não irem a Kiev, mas para irem a Moscou. Negociem com seus homólogos. Vocês são a União Europeia. São 450 milhões de pessoas e uma economia de 20 trilhões de dólares. Ajam como tal.

A União Europeia deveria ser o principal parceiro comercial da Rússia

A União Europeia deveria ser o principal parceiro comercial da Rússia. Europa e Rússia têm economias complementares. A compatibilidade para um comércio mutuamente benéfico é muito forte. A propósito, se alguém quiser falar sobre como os EUA explodiram o Nord Stream, também adoraria falar sobre isso. A administração Trump é imperialista de coração. Trump obviamente acredita que as grandes potências dominam o mundo. Os EUA serão implacáveis e cínicos, e sim, também com a Europa. Não vão mendigar a Washington. Isso não ajudará. Provavelmente estimularia a crueldade. Em vez disso, tenham uma verdadeira política externa europeia.

Não digo que estamos em uma nova era de paz, mas estamos em um tipo de política muito diferente, em um retorno à política das grandes potências. A Europa precisa de sua própria política externa, e não apenas uma política externa de russofobia. A Europa precisa de uma política externa que seja realista, que entenda a situação da Rússia, que entenda a situação da Europa, que entenda o que são os EUA e o que representam, e que tente evitar que os EUA invadam a Europa. Certamente não é impossível que os Estados Unidos de Trump desembarquem tropas na Groenlândia. Não estou brincando, e não acho que Trump esteja brincando. A Europa precisa de uma política externa, uma política externa real. A Europa precisa de algo diferente de dizer: “Sim, negociaremos com o Sr. Trump e nos encontraremos com ele no meio do caminho”. Sabem como será isso? Liguem para mim depois.

Por favor, tenham uma política externa europeia. Vocês vão viver com a Rússia por muito tempo, então negociem com a Rússia. Há questões de segurança reais sobre a mesa tanto para a Europa quanto para a Rússia, mas a grandiloquência e a russofobia não servem em nada à sua segurança. Não servem em nada à segurança da Ucrânia. Essa aventura americana em que se embarcaram e da qual agora são os principais animadores contribuiu para que houvesse cerca de um milhão de vítimas ucranianas.

9- Sobre o Oriente Médio e a China

No que diz respeito ao Oriente Próximo, a propósito, faz 30 anos que os Estados Unidos entregaram completamente o controle da política externa a Netanyahu. O lobby israelense domina a política americana. Por favor, não tenham dúvidas sobre isso. Eu poderia explicar por horas como funciona. É muito perigoso. Espero que Trump não destrua sua administração e, o que é pior, o povo palestino, por causa de Netanyahu, a quem considero um criminoso de guerra que foi devidamente acusado pelo Tribunal Penal Internacional20.

A única maneira de a Europa ter paz em suas fronteiras com o Oriente Médio é a solução de dois Estados. Só há um obstáculo para isso, e é o veto dos Estados Unidos no Conselho de Segurança da ONU, a pedido do lobby israelense. Assim, se quiserem que a UE tenha alguma influência, digam aos Estados Unidos que levantem o veto. Nesse sentido, a União Europeia estaria ao lado de outros 160 países do mundo. Os únicos que se opõem a um Estado palestino são basicamente os Estados Unidos, Israel, Micronésia, Nauru, Palau, Papua-Nova Guiné, Argentina e Paraguai21.

O Oriente Médio é um lugar onde a União Europeia poderia ter uma grande influência geopolítica. No entanto, a Europa tem guardado silêncio sobre o Plano de Ação Conjunto Global (JCPOA) e sobre o Irã, e cerca de metade da Europa tem guardado silêncio sobre os crimes de guerra de Israel e o bloqueio da solução de dois Estados.

O maior sonho de Netanyahu na vida é a guerra entre os Estados Unidos e o Irã, e ele não desistiu. Não é impossível que haja uma guerra entre os Estados Unidos e o Irã, mas a Europa poderia impedi-la, se tivesse sua própria política externa. Espero que Trump ponha fim ao controle de Netanyahu sobre a política americana. Mesmo que não o faça, a UE pode trabalhar com o resto do mundo para trazer a paz ao Oriente Médio.

Por fim, permitam-me dizer em relação à China que ela não é um inimigo. A China é simplesmente uma grande história de sucesso. É por isso que os Estados Unidos a consideram um inimigo, porque a China tem uma economia maior que a dos Estados Unidos (medida em preços internacionais). Os Estados Unidos resistem à realidade. A Europa não deveria fazer isso. Permitam-me repetir: a China não é um inimigo nem uma ameaça. É um parceiro natural da Europa no comércio e na preservação do meio ambiente global.

Isso é tudo. Muito obrigado.

Seção de perguntas e respostas

Pergunta da plateia: A Europa deveria aumentar seus gastos militares?

Resposta do professor Jeffrey Sachs:

Eu não me oporia a que a Europa gastasse entre 2% e 3% do seu PIB em uma estrutura de segurança europeia unificada e investisse na Europa e em tecnologia europeia, sem que os Estados Unidos ditassem o uso dessa tecnologia. Os Países Baixos produzem as únicas máquinas de semicondutores avançados que utilizam litografia ultravioleta extrema. Essa empresa, é claro, é a ASML, mas os Estados Unidos determinam todas as políticas da ASML. Se eu fosse vocês, não entregaria toda a segurança e a tecnologia aos Estados Unidos.

Eu sugeriria que a Europa tivesse um marco de segurança próprio para que também pudesse ter um marco de política externa próprio. A Europa defende muitas coisas que os Estados Unidos não defendem. A Europa defende a ação climática. Nosso presidente está completamente louco nisso. E a Europa defende a decência, a socialdemocracia como um ethos. A Europa defende o multilateralismo. A Europa defende a Carta das Nações Unidas. Os EUA não defendem nenhuma dessas coisas. Nosso Secretário de Estado, Marco Rubio, cancelou recentemente sua viagem à África do Sul porque a igualdade e a sustentabilidade estavam na agenda. Esse é um reflexo vívido, embora sombrio, do libertarianismo anglo-saxão. O igualitarismo não é uma palavra do léxico americano. Nem a sustentabilidade.

O igualitarismo não é uma palavra do léxico americano

Talvez vocês saibam que, dos 193 Estados-membros da ONU, 191 apresentaram planos de ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) à ONU no Fórum Político de Alto Nível (HLPF). Apenas três países não o fizeram: Haiti, Mianmar e os Estados Unidos da América. À Administração Biden nem sequer foi permitido usar a frase “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável”. Menciono tudo isso porque a Europa precisa de sua própria política externa.

Eu publico dois relatórios a cada ano. Um é o Relatório de Felicidade Mundial. No relatório de 2024, oito dos dez países mais felizes são europeus. A Europa tem a melhor qualidade de vida do mundo. Os Estados Unidos ocupam o 23º lugar. O outro relatório anual é o Relatório de Desenvolvimento Sustentável. No relatório de 2024, 19 dos 20 países mais felizes em termos de desenvolvimento sustentável estão na Europa. Os Estados Unidos ocupam o 46º lugar. Vocês precisam de sua própria política externa para proteger essa qualidade de vida! Eu fui e continuo sendo um grande admirador da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) e continuo acreditando que ela é o marco adequado para a segurança europeia. Realmente poderia funcionar.

Pergunta da plateia: Como a Europa deveria estabelecer relações diplomáticas com a Rússia?

Resposta do professor Jeffrey Sachs:

Acredito que há questões de enorme importância que a Europa deve negociar diretamente com a Rússia. Por isso, peço ao presidente Costa e aos líderes europeus que iniciem conversas diretas com o presidente Putin, porque a segurança europeia está em jogo. Conheço muitos dos líderes russos bastante bem. Eles são bons negociadores, e é preciso negociar com eles, e fazê-lo bem. Eu faria algumas perguntas aos meus homólogos russos. Perguntaria: Quais são as garantias de segurança que podem funcionar para que esta guerra termine de forma permanente? Quais são as garantias de segurança para os Estados Bálticos? Parte do processo de negociação é perguntar à outra parte quais são suas preocupações. Conheço o ministro das Relações Exteriores Lavrov há 30 anos. Considero-o um ministro das Relações Exteriores brilhante. Falem com ele. Negociem com ele. Ouçam suas ideias. Coloquem suas ideias sobre a mesa. O mais importante é parar de gritar, parar de incitar à guerra e discutir com os homólogos russos. E não implorem para estar à mesa com os Estados Unidos. Vocês não precisam estar na sala com os Estados Unidos. Vocês são a Europa. Vocês deveriam estar na mesma sala que a Europa e a Rússia. Não entreguem sua política externa a ninguém, nem aos Estados Unidos, nem à Ucrânia, nem a Israel. Mantenham uma política externa europeia. Essa é a ideia básica.

Pergunta da plateia: Países como Polônia, Hungria e República Tcheca queriam se juntar à OTAN. A Ucrânia também. Por que não deveriam ser autorizados a fazê-lo?

Resposta do professor Jeffrey Sachs:

A OTAN não é uma escolha entre Hungria, Polônia, República Tcheca ou Ucrânia. É uma aliança militar liderada pelos Estados Unidos. A questão que a Europa enfrentou em 1991 e enfrenta hoje é como garantir a paz. Se eu estivesse tomando decisões em 1991, teria acabado com a OTAN quando o Pacto de Varsóvia foi dissolvido e, certamente, quando a própria União Soviética foi dissolvida. Quando os países solicitaram a adesão à OTAN, eu teria explicado o que nosso secretário de Defesa, William Perry, o eminente estadista George Kennan e o último embaixador dos Estados Unidos na União Soviética, Jack Matlock, disseram na década de 1990. Todos disseram, em essência: “Entendemos seus sentimentos, mas expandir a OTAN não é uma boa ideia porque poderia facilmente provocar uma nova Guerra Fria com a Rússia”. Há um livro muito bom de Jonathan Haslam, publicado pela Harvard University Press, chamado Hubris. Ele oferece uma documentação histórica detalhada da expansão da OTAN. Explica como os Estados Unidos foram arrogantes demais para discutir, negociar e respeitar as linhas vermelhas da Rússia, mesmo depois de prometer que a OTAN não se expandiria.

Pergunta da plateia: Quais são as consequências de longo prazo desta guerra perdida?

Resposta do professor Jeffrey Sachs:

Temos o suficiente no planeta para o desenvolvimento sustentável de todos

Estamos no momento de maior avanço tecnológico da história da humanidade. É realmente incrível o que pode ser feito agora. Fico maravilhado com o fato de que alguém que sabe pouco de química ganhou o Prêmio Nobel de Química porque é excelente em inteligência artificial e redes neurais profundas; um gênio, Demis Hassabis. Ele e sua equipe da DeepMind descobriram como usar a inteligência artificial para resolver o problema do dobramento de proteínas, um problema que ocupou gerações de bioquímicos. Então, se colocarmos nossas mentes, nossos recursos e nossas energias nisso, podemos transformar o sistema energético global para a segurança climática. Podemos proteger a biodiversidade. Podemos garantir que todas as crianças recebam uma educação de qualidade. Podemos fazer tantas coisas maravilhosas agora. O que precisamos para o sucesso? Na minha opinião, o mais importante é a paz. E meu ponto básico é que não há razões profundas para o conflito em lugar nenhum, porque cada conflito que estudo é simplesmente um erro. Não estamos lutando por espaço vital. Essa ideia, que essencialmente surgiu de Malthus e depois se tornou uma ideia nazista, sempre foi errada, um erro intelectual fundamental. Tivemos guerras raciais, guerras nacionais de sobrevivência, por medo de que não tivéssemos o suficiente para todos neste planeta, de modo que estamos em uma luta pela sobrevivência. Como economista, posso dizer que temos o suficiente no planeta para o desenvolvimento sustentável de todos. Muito. Não estamos em conflito com a China. Não estamos em conflito com a Rússia. Se nos acalmarmos, se pensarmos no longo prazo, o longo prazo é muito bom; isto é, se não nos explodirmos antes. Então, esse é o meu ponto. As perspectivas são muito positivas se construirmos a paz.

Pergunta da plateia: Você acha que a saída para este conflito é a finlandização da Ucrânia?

Resposta do professor Jeffrey Sachs:

Excelente pergunta. Deixe-me mencionar um aspecto da finlandização. A finlandização colocou a Finlândia no topo do Relatório de Felicidade Mundial ano após ano. A Finlândia é rica, bem-sucedida, feliz e segura. Estou falando da Finlândia anterior à OTAN. Então, a “finlandização” foi algo maravilhoso para a Finlândia. Quando Suécia, Finlândia e Áustria eram neutras, bravo. Inteligente. Quando a Ucrânia era neutra, inteligente. Se você tem duas superpotências, mantenha-as um pouco separadas. Se os Estados Unidos tivessem um pouco de bom senso, teriam deixado esses países como espaço neutro entre o exército americano e a Rússia, mas os Estados Unidos têm muito pouco bom senso.

 

 

Publicado originalmente em: https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/sachs-por-uma-europa-livre-dos-eua/


 

Comente aqui