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“Processo de Mariana pode caminhar para condenação da BHP”

Veredicto em Londres promete impacto na responsabilização de multinacionais por desastres socioambientais. Em entrevista, jurista Bruno Teixeira Peixoto analisa eventuais repercussões do julgamento.

Por: Alice de Souza | Crédito Foto: Francisco Proner. Consequências do desastre de Mariana perduram, vítimas aguardam justiça, quase 10 anos depois

Há 10 anos, o fazendeiro e guia peruano Saúl Luciano Lliuya decidiu cobrar a maior produtora de eletricidade da Alemanha, a RWE, pelos riscos de inundação perto da casa dele, na cidade de Huaraz. Lliuya alegou que a empresa era diretamente responsável pelo derretimento de uma geleira na região. Na terceira semana de março, o caso será julgado pelo Tribunal Regional Superior da Alemanha.

Esse é um exemplo emblemático de um movimento mundial que busca responsabilizar empresas por danos relacionados ao clima e meio ambiente em tribunais internacionais. Desse movimento fazem parte ações como a mobilizada no Reino Unido pelas vítimas do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, Minas Gerais, cujo julgamento terminou em 13 de março, e agora aguarda a decisão judicial.

Esses casos podem iniciar uma nova era de responsabilização de multinacionais pelos seus impactos socioambientais, dizem entidades como a Center for International Environmental Law (Ciel). É o que antecipa Bruno Teixeira Peixoto, professor de Direito Ambiental do MBA de ESG (governança ambiental, social e corporativa, na sigla em inglês) da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

“O desfecho desta ação, se procedente, terá tudo para repercutir na área jurídica internacional e, sobretudo, na forma como tribunais interpretam a responsabilidade jurídica por violações aos compromissos de duty of care [deveres corporativos de diligência e cuidado]”, afirma Peixoto.

Em entrevista à DW, o também advogado e doutorando em Direito Ambiental na USP analisa as mudanças que essas ações internacionais podem trazer na cobrança de grandes empresas por danos ambientais causados durante suas operações em países do Sul Global. Para ele, uma eventual vitória das vítimas brasileiras na Inglaterra poderá forçar os tribunais internacionais e nacionais a olharem casos semelhantes com maior rigor e influenciar o ambiente regulatório.

Advogado Bruno Teixeira Peixoto, professor de Direito Ambiental do MBA de ESG da FGV
Advogado Bruno Teixeira Peixoto é professor de Direito Ambiental do MBA de ESG da FGV. Foto: Privat

DW: De que forma o julgamento do caso de Mariana pode impactar a responsabilidade socioambiental das multinacionais no Brasil?

Bruno Teixeira Peixoto: É importante lembrar que a legislação que embasará o julgamento do mérito da ação na Justiça britânica será a brasileira (Código Civil brasileiro, Lei das Sociedades Anônimas, entre outras). Uma empresa no Brasil pode responder juridicamente por danos socioambientais causados em território brasileiro por suas controladas, subsidiárias, inclusive, parceiros de negócios, fornecedores ou representantes formalmente investidos em sua atividade ou no seu interesse.

Logo, a repercussão não será recebida necessariamente como novidade ou inovação jurídica no cenário brasileiro. A jurisprudência de Tribunais Superiores possui entendimentos e precedentes na linha da responsabilidade civil por danos ambientais de modo objetivo e de caráter solidário.

Mas outro possível efeito do julgamento poderá ser visto nas próximas etapas do acordo firmado pela União e Estados brasileiros junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), assim como na ação que um conjunto de municípios moveu contra o respectivo acordo, para rediscutir os valores indenizatórios firmados com as autoridades no Brasil.

Diante da grande repercussão internacional do caso, um julgamento procedente da ação pode redobrar olhares e discussões sobre estas ocorrências de danos socioambientais estruturais, inclusive em termos de iniciativas legislativas que foquem em aprimorar a regulação nacional em melhores práticas desses deveres de governança e gestão empresarial em temas de impactos ESG [governança ambiental, social e corporativa].

Litígios como esse têm crescido. Por que eles são considerados estratégicos?

Estes casos são tidos como processos estratégicos e estruturais em razão da multiplicidade de atingidos e interessados, como também pela complexidade de direitos e deveres e pluralidade de atores, públicos ou privados, ligados à discussão e propriamente à resolução do problema.

Nos últimos cinco anos, a quantidade de litígios em nível mundial envolvendo potenciais violações e danos em questões socioambientais, climáticas e de direitos humanos cresceu consideravelmente. Isso se deve a diversas variáveis, entre elas o êxito e a divulgação em casos de grande relevância, como a ação movida por uma ONG holandesa em face do governo da Holanda, no qual a Suprema Corte de Holanda em 2019 ordenou ao governo que cortasse as emissões de gases de efeito estufa do país em 25% em relação aos níveis de 1990, em linha com o Acordo de Paris da ONU.

Nestes litígios, há diferenças na forma e no conteúdo específico de argumentos e de pressão pública para o acolhimento e julgamento dos pedidos de compensações e indenizações postuladas pelos demandantes, com técnicas que transcendem os processos e que possam ser capazes de repercutir no ambiente regulatório e no mercado.

Quais as diferenças desse tipo de litígios para ações que correm em âmbito nacional?

Elas ficariam no campo extraprocessual ou naquilo que se conhece como advocacy, ou seja, na estratégia de engajamento e pressão. Essas ações denotam características específicas, como promover a demanda na jurisdição da matriz ou da sede principal da empresa ou companhia envolvida, e não no local dos danos e eventuais violações.

Isso no sentido de buscar maior ênfase na repercussão social, política e até econômica e de mercado, pois os danos eventualmente praticados em países em desenvolvimento, se julgados em cortes de países desenvolvidos ou do “Norte Global”, poderiam trazer maior pressão midiática e pública em países nos quais a Justiça e o mercado financeiro tenham maior atenção às responsabilidades a serem exigidas de grandes multinacionais e atores privados.

Para onde estão caminhando as discussões sobre como tratar a responsabilidade jurídica de empresas e grandes companhias pela governança e gestão dos riscos e impactos ambientais e climáticos? O que tem influenciado esse debate?

Cada vez mais ambientes regulatórios do Brasil e do mundo estão reorientando seus padrões e normas ligadas ao controle do comportamento corporativo de grandes companhias e empresas que atuam em setores econômicos geradores de significativos impactos: petróleo, óleo e gás, mineração, agrobusiness, energia, etc..

Essa é uma tendência que vem de alguns anos, especialmente após a pandemia [de covid-19], com inovações em padrões regulatórios dentro da chamada agenda ESG. A União Europeia, por exemplo, tem publicado diversas diretivas recentes que passam a exigir de companhias que atuam no continente europeu, tanto europeias como estrangeiras, a implementação de mecanismos e políticas de due diligence, gestão de riscos, relatórios de sustentabilidade e impactos ESG.

E nessas diretivas, há prevista a responsabilização jurídica por eventuais descumprimentos a estes padrões normativos, o que ressalta a importância dessa discussão. E, ao lado desta agenda de sustentabilidade corporativa, há o movimento dos litígios socioambientais, climáticos e de direitos humanos.

Atualmente o mercado e a regulação financeira global e regional vêm rediscutindo a forma e o dimensionamento regulatório de deveres corporativos de controle, mitigação e reparação de danos. Nunca se olhou tanto para as assim chamadas supply chains [cadeias de suprimento] e para os deveres derivados dela.

Por que os deveres empresariais relacionados a impactos ambientais, humanos, sociais e climáticos foram por muitos anos esquecidos e também pouco exigidos por governos, autoridades e especialmente os tribunais e cortes nacionais e internacionais?

Durante décadas, tratados, acordos, convenções e até normas e leis nacionais em termos de proteção a direitos humanos, condições de trabalho, meio ambiente, mudanças climáticas e deveres de governança e compliance corporativos sofreram com os predicados de “soft law“: normas e padrões desprovidos de imposição, implementação e prescrição de sanções.

Não por acaso, em diversos ambientes regulatórios, incluindo o brasileiro, Estados nacionais por décadas não regulamentaram regras e padrões normativos. Tal prática gerou (e ainda gera) um espaço no qual regras, padrões e práticas nestes temas acabam somente “para inglês ver”.

Antes mesmo de a agenda [de governança ambiental, social e corporativa] ser definida pelo acrônimo ESG, diversas obrigações nacionais e internacionais permaneceram desprovidas de integral aplicação e desenvolvimento nas estruturas corporativas. E tal contexto também se refletiu por décadas em cortes e tribunais nacionais e internacionais. No entanto, como já mencionado, não só ações judiciais pelo mundo, como também reorientações regulatórias estão trazendo alterações nesse universo de normas e deveres corporativos.

Qual é o papel que as cortes internacionais têm na revisão da forma como se cobram esses deveres?

Em grande parte dos casos ajuizados em diversos países, os pedidos envolvem reparação de danos, trazendo a discussão sobre indenizações, mas também de obrigações de fazer padrões, políticas, planos de ação ou reestruturações de governança, gestão de riscos e controle de impactos nas cadeias de produção. Isentar ou afastar o cumprimento de deveres corporativos ESG está cada vez mais difícil para as cortes e os tribunais nacionais e internacionais.

Cortes e tribunais de diversos países, quando provocados por ações judiciais a exemplo desta do desastre de Mariana na Justiça britânica, têm o dever funcional de exercer a suas competências de apreciação e julgamento em casos que tratem de hipóteses legais para sua atuação.

Com base em casos anteriores já decididos na Justiça britânica, é possível estimar qual será o possível resultado desse julgamento?

A Justiça britânica já decidiu casos similares, talvez não com a mesma complexidade, tampouco com uma igual quantidade de demandantes, visto que esta ação coletiva do caso de Mariana é indicada como a maior ação coletiva ambiental do mundo.

Em casos similares, as cortes britânicas têm entendido que sociedades empresariais/corporativas controladoras têm um compromisso de vigilância e cuidado sobre atividades e eventuais riscos e prejuízos causados por parte de suas sociedades subsidiárias e/ou controladas, ainda que sediadas em países distintos de suas sedes oficiais. Este pode ser um sinal de que o julgamento no caso coletivo do desastre de Mariana caminhe para o reconhecimento da responsabilidade da BHP pelos danos ocorridos em 2015 no Brasil.

Apesar das discussões sobre se haveria “dupla condenação” da mineradora, haja vista o acordo [de repactuação] no Brasil, o que se verifica é a efetiva reparação de um dos maiores desastres socioambientais do mundo, refém de uma década de idas e vindas sem respostas. De toda forma, a complexidade jurídica e processual, os valores bilionários envolvidos e o extenso julgamento dificultam a previsão de um cenário exato.

 

 

 

Publicado originalmente em: https://www.dw.com/pt-br/processo-de-mariana-pode-caminhar-para-condena%C3%A7%C3%A3o-da-bhp/a-71955077

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