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Os anos de Frantz Fanon na Argélia no cinema

Na Argélia sob domínio francês, Frantz Fanon era psiquiatra e membro ativo da Frente de Libertação Nacional. Agora, um novo filme retrata seu compromisso com a luta anticolonial.

Por: Phineas Rueckert | Entrevista com: Jean-Claude Barny | Tradução: Pedro Silva |Imagem: de Fanon. (Special Touch Studios, WebSpider Productions)

Atrás de uma porta trancada, gemidos e lamentos podem ser ouvidos em meio a uma trilha sonora sinistra. Vestido com um jaleco branco e um terno bege, Frantz Fanon está prestes a encontrar, pela primeira vez, os pacientes da ala psiquiátrica do hospital Blida-Joinville, na Argélia colonial.

A cena seguinte é sombria — tanto cinematográfica quanto psicologicamente. O quarto em que Fanon entra parece mais uma prisão ou um centro de tortura do que um sanatório. Alguns dos pacientes, amontoados na ala psiquiátrica como gado, estão presos em camisas de força; outros têm os tornozelos e pulsos acorrentados às paredes. Após um longo momento, Fanon olha para o interno que o guia pelo local. Ordena-lhe severamente que busque as chaves para desacorrentar todos. Na cena seguinte, os pacientes são liberados sob o sol ofuscante do pátio, um nítido contraste de luz e escuridão.

Em cena, está exposto o peculiar universo cinematográfico de Fanon — criação de Jean-Claude Barny, cineasta francês de ascendência guadalupeana e trinitária. O filme foi lançado na França (incluindo a Martinica, hoje um departamento ultramarino francês), Bélgica, Luxemburgo e dezoito países francófonos da África em 2 de abril, e será lançado no Canadá em outubro.

Fanon, de Barny, não segue os códigos cinematográficos típicos. Como o diretor disse à Jacobin, é um filme biográfico que “não vai de A a Z, mas começa em algum lugar por volta de C”. “Fanon”, acrescentou Barny, é um “filme de arte para o público em geral”.

“Para Fanon, a experiência na Argélia foi uma época de despertar político e de libertação intelectual.”

Tal abordagem talvez fosse necessária para captar as complexidades do tema do filme: o período de três anos entre 1953 e janeiro de 1957, quando Fanon, então um jovem mas ambicioso psiquiatra da colônia francesa da Martinica, atuou como chefe de departamento clínico no Hospital Psiquiátrico Blida-Joinville, na Argélia. Esse período — que ocorreu logo após a publicação de sua tese sobre alienação colonial em Pele Negra, Máscaras Brancas — coincidiu com parte da escrita do que mais tarde se tornaria seu livro mais conhecido, Os Condenados da Terra, e com o apogeu de seu envolvimento pessoal em movimentos de guerrilha anticoloniais como um combatente pela liberdade ligado à Frente de Libertação Nacional (FLN) da Argélia.

Para Fanon, a experiência na Argélia foi um período de despertar político e de libertação intelectual. No entanto, seu duplo papel de clínico e revolucionário torturava cada vez mais o psiquiatra: uma tensão que se acumula ao longo do filme. Em 1957, Fanon foi forçado a se exilar na Tunísia, onde se tornou porta-voz da FLN em todo o continente africano. Embora o movimento de guerrilha anticolonial da Argélia finalmente tenha sucesso com a assinatura dos Acordos de Évian em março de 1962, que levaram à independência, Fanon não chegou a ver o resultado final. O médico morreu de leucemia em um leito de hospital no Centro Médico Militar Nacional Walter Reed, em Bethesda, em dezembro de 1961.

Ao focar naqueles anos cruciais que antecederam o exílio de Fanon — anos que moldaram sua tese anticolonial e sua ênfase na necessidade da luta armada —, Fanon , de Barny, lança uma luz necessária sobre um dos principais pensadores pós-coloniais do mundo, alguém que, cem anos após seu nascimento na Martinica, continua a inspirar.

Phineas Rueckert conversou com o diretor Barny em uma casa não muito longe de onde ele cresceu, nos subúrbios do nordeste de Paris.


PHINEAS RUECKERT

Você é de origem guadalupeana e trinitária, mas cresceu nos subúrbios de Paris. O que Fanon significou para você enquanto crescia? Você tinha uma ligação especial com ele?

JEAN-CLAUDE BARNY

Paradoxalmente, não, eu não cresci com Fanon. Ou seja, eu não nasci com Fanon nas mãos. Eu não nasci com uma cultura fanoniana na mente. Eu cresci em um período chamado “Trinta Anos Gloriosos”, uma época [de crescimento econômico na França pós-1945] que marcou o fim da assimilação e o início da integração. Então, eu cresci em um contexto histórico único, no qual a França era [onipresente] e tudo o que estava ligado à minha herança, à minha cultura, era totalmente ostracizado.

“Em 1957, Fanon foi forçado a se exilar na Tunísia, onde se tornou porta-voz da Frente de Libertação Nacional da Argélia em todo o continente africano.”

Mas eu tive uma mãe que, sem dúvida, estava em sintonia com o seu tempo: as lutas feministas dos anos 1960 e 1970, os movimentos antidiscriminação nos Estados Unidos, que tiveram uma enorme influência no Caribe. Foi a música, antes da literatura, que trouxe isso à tona: James Brown, Aretha Franklin, Nina Simone, [Bob] Marley. Eles substituíram os intelectuais literários dos anos 1950 e a música [radicalizou] minha mãe, dando o tom para a resistência.

PR

Então, quando Fanon apareceu pela primeira vez na sua vida?

JCB

Eu tinha dezesseis anos quando peguei Pele Negra, Máscaras Brancas. Crescia em um subúrbio multicultural onde havia questões reais sobre quem somos, para onde estamos indo e como projetar a sociedade. Quando descobri Pele Negra, Máscaras Brancas, eu era um jovem em meio à emancipação, em meio à reflexão sobre esses assuntos. Ao mesmo tempo, havia uma série [de TV americana] — Roots — que nos atingiu como uma tonelada de tijolos. Na escola, isso era um grande negócio, em termos do fato de que poderia haver pessoas negras na tela. Mesmo que não fossem as mais radiantes, elas estavam lá. Quando li Fanon e vi que éramos invisíveis [na cultura pop], disse a mim mesmo: “Há algo errado, há um apagamento flagrante de [pessoas negras]”.

PR

Fanon é seu terceiro longa-metragem, depois de Nèg Maron [“Homem Marrom” no idioma crioulo haitiano] (2005) e A Gangue das Antilhas (2016). Os temas que emergem em Fanon já estavam presentes nesses filmes?

JCB

Os primeiros filmes que você faz sempre parecem uma necessidade. Você tem que resolver suas questões consigo mesmo e com a estrutura social em que vive. Acho que Nèg Maron e A Gangue das Antilhas foram, para mim, os alicerces do que eu produziria no futuro. Estava me construindo como diretor, como cineasta, como artista. Estava aprimorando minhas habilidades para que, quando encarasse Fanon, não perdesse a mão.

Imagem de Fanon. (Special Touch Studios, WebSpider Productions)

Intelectualmente, Fanon é um monstro. E então, eu disse a mim mesmo que o filme tinha que estar à altura desse homem. Ao mesmo tempo, eu tinha que ser capaz de oferecer algo diferente da maioria dos filmes biográficos. Para mim, Nèg Maron e A Gangue e minhas outras produções — incluindo [a série] Tropiques amers [Trópicos amargos] ou [o filme para TV] Rose and the Soldier [Rose e o Soldado] — foram projetos que me permitiram estabelecer minha legitimidade. Se eu não tivesse feito todos aqueles filmes no passado e tentasse fazer Fanon hoje, as pessoas me olhariam com desconfiança, e com razão. Mas os outros filmes que fiz me deram a posição para encarar Fanon.

PR

Vamos falar sobre o filme em si, que se concentra nos três anos que Fanon passou na Argélia. O que você quer que as pessoas tirem do filme e por que focar nesse período em particular?

JCB

O objetivo era pegar a escrita de Fanon e torná-la digerível. Meu trabalho, como diretor, é transformar esses temas em emoções por meio de imagens, som e música. Tenho muitas ferramentas para fazer isso acontecer de uma forma digerível. Tenho atores, tenho diálogos, tenho cenários, tenho figurinos, tenho música, tenho ação, tenho luz, tenho movimento, tenho uma câmera. Então, posso colocar tudo isso para funcionar. As palavras de Fanon de repente se tornam algo comovente. Então é isso que está no filme: são realmente as palavras do livro Os Condenados da Terra. É uma jornada dentro deste livro ao longo de duas horas e dezessete minutos.

“Eu queria que o filme entrasse na psique de Fanon.”

Eu não estava interessado em fazer um filme biográfico que fosse do nascimento de Fanon à sua morte. Para mim, riqueza é quando você se dá os meios para ir contra tudo o que a indústria impõe: ter mais tempo do que o habitual, [adaptar] uma estrutura que não vai de A a Z, mas de C a Z, [trabalhar com] atores que não estão acostumados a trabalhar juntos, cenários que não são necessariamente realistas, mas simbólicos. Eu queria que o filme entrasse na psique de Fanon. Uma psique é algo imaterial, abstrato. A ideia era permitir que o filme, para além do seu realismo histórico, deixasse a porta aberta para que interpretássemos a alienação da psique do próprio Fanon e das pessoas que ele trata.

Então, quais eram as tensões internas de Fanon e como você mostra isso no filme?

JCB

Decidimos mostrar isso de fato através das lentes do hospital psiquiátrico. Este era realmente o seu campo de batalha. Fanon era, antes de tudo, um psiquiatra. A ideia de alienação já existia no campo da psiquiatria; o que Fanon fez foi transferi-la do indivíduo para a sociedade. Como a psique de uma pessoa é perturbada quando condições que a rebaixam, desacreditam e a desempoderam são impostas à força? Fanon decidiu fazer do hospital o campo de testes para o racismo e a discriminação.

[Ele partiu] da observação de que a colonização é a manipulação, por aqueles que querem adquirir riqueza, daqueles considerados “incapazes” de desenvolvê-la. Fanon, como muitos outros, explicou essa situação com muita clareza. Mas ele foi inovador foi ao afirmar que “o colonizador jamais conseguirá se libertar do colonizado, porque os dois estão interligados”. Os dois estão presos em uma relação de dependência e jamais conseguirão se desvencilhar um do outro se apenas um tentar. Isso só acontecerá quando começarem a trabalhar juntos e se reconhecerem mutuamente, compreenderem a loucura em que estão envolvidos.

PR

Falamos muito sobre Fanon como um revolucionário, um pensador anticolonial, um rebelde, mas qual é o legado de Fanon como psiquiatra? Esse legado ainda está vivo?

JCB

Quando analiso o feedback dos psiquiatras que me falaram sobre o filme, vejo uma corrente que sempre estudou as observações psiquiátricas de Fanon. Não se trata do estudo acadêmico predominante da psiquiatria, mas de uma escola de pensamento para os curiosos. Sem ser especialista no assunto, eu diria que sim, de fato, há muitos psiquiatras hoje que estão cada vez mais retornando ao estudo de Fanon — não mais como um caso isolado ou uma curiosidade, mas sim como alguém que tinha uma abordagem científica, alguém que estabeleceu uma base científica para o trabalho com pessoas mentalmente adoecidas.

PR

Tenho a impressão de que, por falta de uma palavra melhor, Fanon está realmente “na moda” no momento. Um livro de sucesso foi publicado recentemente — “A Clínica Rebelde”, de Adam Shatz —, o seu filme, e há reedições da obra de Fanon saindo. Por que esse interesse por Fanon neste momento específico, além do fato de que já faz cem anos que ele nasceu, é claro? O que explica isso?

JCB

É muito difícil dizer. Seria ingênuo dizer que é aleatório. Acredito que todos nós que nos reunimos hoje para este centenário e que contribuímos de alguma forma, nos preparamos há algum tempo, ainda que inconscientemente. Estou trabalhando neste filme há sete anos. É como se nós [que estudamos Fanon] tivéssemos um período de maturação de quarenta anos e finalmente nos encontrássemos ao mesmo tempo. Isso corresponde à época em que todos nós lemos Fanon, quando todos nós ficamos chocados com Fanon e, desde então, tivemos que continuar a nos nutrir, a aprender, a adquirir humildade e conhecimento. É claro que havia muita gente à nossa frente.

Imagem de Fanon. (Special Touch Studios, WebSpider Productions)

Há muitos livros sobre Fanon: essas pessoas nos deixaram um tesouro. Então, talvez também sejam visionários, mas não tiveram o mesmo timing. Nas próximas semanas, pode ser a primeira vez na história em que o rosto de Fanon adornará as paredes do metrô de Paris. Esse, para mim, é o primeiro sucesso do filme: milhões de pessoas que pegam o metrô olharão para este homem, que foi totalmente ostracizado, banalizado, tratado como um pária, e se perguntarão quem ele foi.

PR

Mudando de assunto, eu queria falar um pouco sobre a Argélia, onde o filme se passa. As relações entre a França e a Argélia estão, para dizer o mínimo, um pouco tensas na época em que este filme é lançado. Você poderia falar um pouco sobre o que este filme também diz sobre a relação colonial entre a França e a Argélia? Você acha que o filme poderia ser mais uma fonte de tensão ou, inversamente, que poderia de alguma forma contribuir para apaziguar essas tensões?

JCB

O filme não vai resolver nada nesse nível. A ferida entre a França e a Argélia é tão profunda em ambos os lados que, se não houver vontade de fechá-la, sempre haverá alguém para colocar mais lenha na fogueira. É como um divórcio ruim, um divórcio em que uma das partes não reconhece seus erros. Esse sentimento é amplamente mantido pelos filhos dos pieds noirs [colonos franceses na Argélia].

“O lançamento do filme pode ser a primeira vez na história em que o rosto de Fanon irá adornar as paredes do metrô de Paris.”

O cidadão francês médio não tem nada contra a Argélia. Para eles, é um país que já foi uma colônia. Hoje, as tensões entre a Argélia e a França não são um fato de cidadania; são um fato político, e esse fato político é sustentado pela nostalgia que tem sua origem nos “pieds noirs”, que, em sua maioria, não aceitaram o fato de terem sido expulsos. Houve uma espécie de desamor violento, o que significa que hoje eles estão amargurados por um lugar onde antes se sentiam legítimos, amados e, acima de tudo, à vontade.

PR

Você não conseguiu filmar este filme na Argélia e, portanto, o filmou na Tunísia. Por quê? O que aconteceu?

JCB

Passei praticamente três anos explorando locações. Fui à Argélia, fui a Blida [o hospital em Argel onde Fanon era médico]. Estive no consultório de Frantz Fanon. Fiz muito trabalho de pesquisa para não ficar sem informações quando ia trabalhar com meus atores e técnicos. Precisava ter uma resposta para tudo. Então, trabalhei duro por três ou quatro anos para o filme estar mais informado, completo e legítimo possível.

Mas, na hora de filmar, tivemos um grande problema com o seguro. Não sabíamos como validar nossas apólices de seguro para podermos filmar com segurança na Argélia, então o país irmão — a Tunísia — nos convidou para substituir algumas das tomadas. Na verdade, é simplesmente porque as condições de filmagem eram mais adequadas para o nosso seguro na Tunísia. Mas isso não invalida o fato de que os dois países colaboraram para que pudéssemos fazer o melhor filme possível.

PR

O filme foi lançado na França em 2 de abril. Ele será lançado em outros países?

JCB

Essa é uma boa pergunta, porque é aí que você vê que Fanon é um fenômeno global. Parece ingênuo, mas me surpreendo quando pessoas do Brasil me mandam mensagens na França perguntando como e onde podem assistir ao filme. Isso me diz que há pessoas ao redor do mundo que querem assistir a este filme. Ele será lançado na Bélgica, Luxemburgo, Canadá e em mais de uma dúzia de países africanos. Fanon não está na França. Fanon está em turnê mundial.

 

 

Publicado originalmente em: https://jacobin.com.br/2025/05/os-anos-de-frantz-fanon-na-argelia-no-cinema/