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Utopia: buscá-la se tornou algo tedioso?

Uma diálogo entre Ernest Bloch, autor que “restituiu” a dignidade da ideia de esperança, e Adorno. Refletem sobre os efeitos da tecnologia e cutucam as esquerdas: é preciso resgatar a imaginação política e enfrentar à “venda de sonhos” feita pela indústria cultural

Por: Bruna Della Torre, no blog da Boitempo| Crédito Foto: Outras Palavras. “Marcha do Futuro”, 2023, datilografia e carimbo sobre fragmentos dos livros: ‘Utopía’, ‘Utopia Selvagem’, ‘Brasil País do Futuro’, e outros

Ao contrário de seu espírito, cujo elemento constituinte é sobretudo a fidelidade ao pensamento dialético, a recepção da Escola de Frankfurt reestabeleceu uma certa divisão do trabalho que esses escritores buscaram a todo custo evitar. Quando se fala de utopia, as referências são Ernst Bloch, Herbert Marcuse e Walter Benjamin. Max Horkheimer é um caso à parte, pois suas posições políticas variam de modo mais intenso, talvez, do que todos os anteriores: marxista e utópico na juventude, mais conservador e resignado na maturidade. Theodor W. Adorno, com sua dialética negativa, passaria longe da utopia. Grande parte de sua fortuna crítica aponta certa “superioridade” política em relação aos anteriores, como se Adorno não padecesse dos sonhos pueris dos que se declararam mais abertamente socialistas ou comunistas (o anti-Lukács, por excelência) — como adultos que piscam entre si diante da ingenuidade de uma criança. A pergunta que surge é: a quem interessa pensar a obra de Adorno fora de seu diálogo com a utopia? Em boa parte da Alemanha hoje, Adorno é lido como um adversário do marxismo, um representante do liberalismo que triunfou com a queda do muro de Berlim — ou seja, tudo menos utópico, um realista sóbrio, profundamente refinado, germânico e complexo, sem tempo para simplificações ou delírios esquerdistas. Parte da recepção brasileira também seguiu esse caminho e, embora seja uma referência nos estudos de filosofia e estética, o diálogo de Adorno com o marxismo e com o socialismo permanece em parte apagado.

Com a publicação de novas histórias intelectuais da Escola de Frankfurt, como Os herdeiros de Adorno, de Jörg Später e À sombra da tradição: uma história do IfS de uma perspectiva feminista, organizado por Christina Engelmann, Lena Reichardt, Bea S. Ricke, Sarah Speck e Stephan Voswinkel, seu papel como um grande intelectual de 1968 (a despeito de seu conflito com os e, principalmente, as estudantes) ganha maior destaque. Intelectual público que foi nas décadas de 1950 e 1960 na Alemanha Ocidental, Adorno foi responsável pela formação de uma geração de esquerda marxista na Alemanha composta por Elisabeth Lenk, Alexander Kluge, Detlev Claussen, Regina Becker-Schmidt, entre outros. Pensadores que buscaram dar continuidade ao projeto da primeira geração da teoria crítica quando o Instituto de Pesquisa Social mudou de diretriz, após a morte de Adorno. Além do papel político fundamental que cumpriu nesse período, e paralelo aos debates relativos à dialética negativa e ao papel do sofrimento na estética, Adorno também desenvolveu uma série de reflexões sobre a utopia, que raramente são retomadas pela sua fortuna crítica: desde seu debate com Elisabeth Lenk sobre o surrealismo, passando por uma breve e interessante introdução ao livro Teoria dos Quatro Movimentos de Charles Fourier, até a sua Teoria Estética — que sofreu grande influência de seu debate com Elisabeth Lenke estárepleta de referências ao temaSe é evidente que a teoria crítica, quando surgiu na década de 1930, opunha-se em grande medida ao marxismo mecânico dos partidos comunistas e socialistas dentro e fora da Alemanha; e que a vida e a obra desses autores — como de muitos na esquerda — foram marcadas por fortes contradições (isto é, marcadas por uma infeliz dose de misoginia e classismo), por outro lado, pensar a obra de alguém como Adorno fora de seu diálogo com Marx e com o socialismo é tão proveitoso intelectualmente quanto ler Marx sem Hegel. Se o marxismo perde muita coisa ao desconsiderar a teoria crítica como um de seus desdobramentos, a teoria crítica que se desvincula do pensamento de esquerda se torna um exercício vazio.

Por isso, vale a pena lembrar aqui uma conversa entre Adorno e Bloch — o autor que, segundo Adorno, restituiu a dignidade da palavra utopia com o seu Espírito da utopia. O diálogo ocorreu na rádio Südwestfunk, em 1964, e foi posteriormente publicado no livro Conversas com Ernst Bloch. O texto é antigo (talvez demasiadamente antigo, a ponto de ter sido esquecido), mas, além de revelar esse lado pouco debatido de Adorno, também apresenta reflexões sobre dois temas extremamente atuais e que precisam ser retomados pelo pensamento de esquerda: a relação entre utopia e tecnologia; e a relação entre socialismo e utopia.

Utopia e tecnologia 

Ao ser perguntado sobre o desgaste da palavra utopia, sobre sua redução ao adjetivo pejorativo “utópico” (como aquilo que designa intenções inalcançáveis) e sobre o declínio daquilo que a palavra mesma designa, Adorno nos expõe a uma interessante reflexão a respeito da relação entre utopia e tecnologia. Segundo ele, “os tais sonhos utópicos — como a televisão, como a possibilidade de visitar outros astros ou deslocar-se mais rapidamente que o som — se realizaram” (Adorno apud Traub e Wieser, 1975:58). E, ao fazê-lo, ganharam algo de sóbrio, tedioso e positivista. Não se trata, diz Adorno, de afirmar que tudo aquilo que se coloca como possibilidade perde densidade quando se realiza — ou seja, de repetir o clichê da psicanálise de que a realização de qualquer desejo satisfaz menos que o próprio desejo —, mas de repensar profundamente o sentido da palavra utopia. Esta, em sua história literária e filosófica, como comenta também Bloch, esteve profundamente ligada à tecnologia: de Tommaso Campanella, passando por Francis Bacon, até os contos de fada das Mil e uma noites, a utopia se constituiu também como um manual de invenções. Ou seja, sua existência enquanto gênero não se restringiria ao desejo de uma vida boa, a uma utopia social, nas palavras de Bloch, tal como exposto no clássico De optimo rei publicae statu deque nova insula Utopia de Thomas Morus, mas também se referia a uma imaginação técnica. Adorno chama a atenção, indiretamente, para como a noção de utopia foi reduzida a uma noção meramente tecnológica. Basta ver como todas as distopias — e a distopia, como ressalta Bloch, também é uma das formas da utopia — de ficção científica no cinema e na literatura em épocas mais recentes envolvem ou um evento que aniquila a sociedade da técnica, fazendo a humanidade regredir a um novo “estado de natureza”; ou um desenvolvimento descontrolado dessa mesma técnica, transferindo o domínio dos homens para as máquinas. Grande parte da chamada “ecoliteratura” hoje evoca o par binário natureza (vida humana e não humana) e tecnologia (morte). Quer dizer, tanto na utopia, quanto nas distopias, uma não pode ser mais pensada sem a outra, confirmando a intuição política e literária de Adorno.

Isso significaria, de certa forma, que a história das utopias não correu paralela à história do capitalismo, mas com ela se imbricou, de modo que esse último se constituiu também como uma fábrica de utopias que, como ressaltou Adorno, desapontam profundamente quando de sua realização. Assim, nas palavras de Adorno, “hoje se pode ver televisão, enxergar longe — mas, em vez de se encontrar ali algo que corresponda a uma imagem desejada, uma utopia erótica, vê-se, no melhor dos casos, uma cantora de música pop mais ou menos atraente, que nos engana até em sua beleza ao cantar alguma bobagem, que geralmente consiste em dizer que ‘rosas’ e ‘noites de luar’ estariam em harmonia entre si”  (Adorno apud Traub e Wieser, 1975:58-59). Aqui Adorno joga com as expressões fernsehen [ver televisão] e in die Ferne sehen [enxergar longe]. O sentido irônico que a expressão tem na frase mostra que a semelhança entre as palavras é enganosa, assim como a tecnologia embutida na televisão: ver algo a milhares de quilômetros de distância — ganho tecnológico permitido pelo aparato — não é a mesma coisa que enxergar longe, além do que está aí. Para além de aludir à indústria cultural como setor que tem o monopólio da venda de sonhos no mundo capitalista, Adorno discute também como o véu tecnológico que cobre a sociedade capitalista teria encoberto ainda a própria utopia.

Para Adorno, o problema residiria não na tecnologia em si, mas na oposição entre o desenvolvimento tecnológico e o todo; e a preponderância do primeiro sobre a imaginação de transformação da segunda. Adorno destaca que “o que é a utopia, o que pode ser apresentado como utopia, é a transformação do todo” (Adorno apud Traub e Wieser, 1975:61). A relevância desse debate num mundo que está de joelhos diante do Vale do Silício não pode ser suficientemente ressaltada diante de parcelas da esquerda que hoje apostam estrategicamente na reforma da Big Tech, do cooperativismo de plataforma até a disputa política nas redes sociais. O quiproquó entre utopia e tecnologia induziria os desavisados a comprar o ticket “revolucionário” daqueles que comandam as forças produtivas burguesas, sem atentar para as forças de conservação subjacentes a tais desenvolvimentos. O efeito político seria o bloqueio da consciência, um bloqueio que hoje se espraia por todos os espectros políticos da sociedadeO paradoxal da situação toda, diz Adorno, reside no fato de que o que paralisa não é a distância da utopia, mas sua proximidade. Quer dizer, as pessoas, admitam ou não, sabem que

“seria possível, poderia ser diferente. Elas poderiam não só viver sem fome e provavelmente sem medo, mas também como pessoas livres. Ao mesmo tempo, o aparato social tornou-se tão rígido em relação a elas, em todo o mundo, que o que elas veem como uma possibilidade tangível, como a possibilidade óbvia de realização, apresenta-se a elas como radicalmente impossível. E se, universalmente, hoje as pessoas dizem o que em tempos mais inofensivos era reservado apenas para os burgueses esnobes: “Ah, essas são utopias, ah, isso só é possível na terra do leite e do mel; no fundo, isso não deveria existir de modo algum”, então eu diria: isso é porque as pessoas só conseguem lidar com a contradição entre a possibilidade evidente da realização e a igualmente evidente impossibilidade da realização de uma única maneira – identificando-se com essa impossibilidade, apropriando-se dela como se fosse sua, e, para usar uma expressão de Freud, “identificando-se com o agressor” – e dizendo que isso não deve existir, embora sintam justamente que isso deveria existir, mas que lhes é negado por uma espécie de feitiço lançado sobre o mundo” (Adorno apud Traub e Wieser, 1975:61).

A revolta da extrema direita com o “comunismo”, o seu ímpeto de negação de qualquer mudança na direção de uma transformação real da sociedade — que, ao mesmo tempo, evoca uma insatisfação profunda com o estado de coisas atual — tem a ver com isso. Seu ódio contra a utopia aparece na transformação na ideia de “comunismo” numa alegoria, que remete a múltiplas formas de libertação, de justiça e de igualdade e se torna cada vez mais insuportável quanto mais nos aproximamos dela. Para Adorno, então (e isso é um traço marxista compartilhado pelos autores da teoria crítica como um todo), as condições de possibilidade da mudança radical da sociedade já estão dadas, bastaria um salto — que nada tem de tecnológico. Enquanto alguns bilionários da Big Tech procuram comprar o ticket de desembarque do apocalipse que eles mesmo produzem, enquanto procuram vencer a última barreira da utopia (que é, segundo Bloch, a morte), cabe a nós repensar o lugar dessa ideia no século XXI.

Socialismo e utopia 

Mas a utopia não está apenas desgastada pelo capitalismo — embora esteja também; como bem ressalta Bloch, quanto a isso, “ocidente e oriente” estariam no mesmo barco, no qual “não deve haver nada utópico” (Bloch apud Traub e Wieser, 1975:72).

Os autores concordam, nesse sentido, que não só o chamado “socialismo real” também contribuiu para essa erosão, mas que problema estava já no próprio Marx, tendo em vista a crítica que este fez a Robert Owen e aos socialistas utópicos franceses. Com isso, diz Adorno, “o aparato”, o “como”, os “meios de uma sociedade socialista” — aqui, de novo, a questão é reduzida à técnica e até mesmo à gerência — “passaram a ter primazia sobre qualquer conteúdo possível […] e, assim, a teoria do socialismo, consequentemente hostil à utopia, tende agora a se tornar realmente uma nova ideologia para a dominação” (Adorno apud Traub e Wieser, 1975:71). Bloch adverte que, no tempo de Marx, a crítica à utopia

“foi, na verdade, apenas uma medida polêmica […] dirigida contra os utopistas abstratos que o precederam, ou seja, aqueles que acreditavam que bastava apelar à consciência dos ricos para que começassem a serrar o galho sobre o qual estavam sentados. Marx se opôs à supervalorização do intelectualismo humano, característica dos socialistas utópicos. Ou seja: o que está em jogo aqui é o interesse concreto e o olhar hegeliano para a concretude. Isso foi como um remédio contra o pensamento excessivamente especulativo, contra o espírito demasiadamente especulativo daquela época – e, sem isso, O capital provavelmente nunca teria sido escrito […]. [Porém,] a virada, ditada pelas circunstâncias históricas, contra a utopia teve agora efeitos terríveis. […] As únicas consequências que disso surgiram foram catastróficas: numa situação inteiramente modificada, limitou-se a repetir, de forma acrítica, a letra de Marx. Do ponto de vista marxista, é absolutamente necessário investigar com olhar detetivesco e revelar o que de fato está em jogo — sem qualquer traço de positivismo; pelo contrário: em nome da justiça ainda por vir, mas sem esquecer o outro lado, o utópico. Pois o tecnocrático não é o objetivo do exercício” (Bloch apud Traub e Wieser, 1975:72).

Tudo isso para dizer que um materialismo mecânico não pode abrigar a utopia, cuja função — e nisto Bloch e Adorno estão de acordo — é ser uma crítica do existente, uma negação determinada que, mesmo quando se afirma como algo falso, permanece apontando para a superação desse estado. Não se trata de compor uma imagem da utopia que pudesse ser realizada em sua plenitude. A ideia de utópico aqui tem menos a ver com espaço, como seu sentido original, ou com o futuro (determinado pela mudança de dimensão da utopia, como ressalta Bloch, do espaço para o tempo), mas com uma noção de processo, de devir — daí a proibição de congelar a utopia em conteúdos específicos e fechados. A utopia diz respeito à possibilidade mesma de transformação, ela é um fim que só se realiza plenamente como meio — ou seja, a inversão da racionalidade capitalista, que, ao contrário, faz dos meios, fins. Nas palavras de Bloch, seria preciso retomar a ideia de Bertolt Brecht expressa em Mahagonny: “algo falta”. Algo, diz ele, que não se pode nem conjurar com a mera determinação nem dispensar como quimera. Uma utopia que se delineia também no desejo da sociedade de finalmente respirar, de ter “liberdade de não precisar ganhar a vida, ao invés da liberdade de poder ganhá-la” (Bloch apud Traub e Wieser, 1975:73-74). Nesse ponto, diz Bloch, a tecnologia ocupa um pequeno espaço na utopia, e o próprio marxismo aparece apenas como pré-condição para uma vida em liberdade, uma vida em felicidade, uma vida de possível satisfação, uma vida com conteúdo. Um marxismo que tem em seu horizonte a sua própria prescrição, conforme já havia apontado o jovem Lukács.

Por fim, vale comentar um último aspecto da utopia para a qual chama a atenção Bloch: sua relação com a esperança (também vilipendiada pela crítica promovida por uma parte do marxismo nos últimos anos). Ele afirma que “a esperança não é garantia. Se ela não pudesse ser frustrada, não seria esperança” (Bloch apud Traub e Wieser, 1975:75). Isso faria parte, diz ele, de sua natureza, pois do contrário, seria uma capitulação. Nesse sentido,

“a esperança é crítica, a esperança é passível de decepção — mas ainda assim, finca uma bandeira no mastro, mesmo na queda, ao recusar aceitar a queda, por mais poderosa que ela seja. A esperança não é garantia; ela está cercada de perigos — e é, ao mesmo tempo, a consciência do perigo e, ao mesmo tempo, a negação determinada daquilo que torna continuamente possível o contrário do que se espera” (Bloch apud Traub e Wieser, 1975:75).

Em tempos em que a insegurança econômica, climática, subjetiva, existencial predomina, a esperança torna-se um afeto penoso, talvez até mesmo indesejável. Na esquerda, ela é excluída tanto do lado daqueles que projetam no socialismo uma imagem enrijecida, em parte já realizada, quanto naqueles que se refugiam numa negatividade estranha à teoria crítica desde Marx. “Algo falta” no pensamento revolucionário hoje. Esse algo é a utopia.

 

 

Publicado originalmente em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/utopia-busca-la-se-tornou-algo-tedioso/