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Viver como escravo depois da abolição: “Pra quem nasceu preto, a escravidão continuava sendo normal”

Na década de 30, quase meio século após a assinatura da Lei Áurea, Vicente da Silva viveu anos escravizado no interior de Minas. Aos 18, rompeu o ciclo e prosperou com a expansão da capital Belo Horizonte

BREILLER PIRES

Vicente José da Silva não sabia o que era relógio. Entretanto, quando o sol virava para o outro lado do riacho, sabia que estava na hora de apartar as vacas dos bezerros e selar o animal de seu senhor. Do entardecer ao luar, caminhava descalço por até quatro horas puxando o cavalo que o patrão montava pelas estradas. Por aproximadamente 10 anos, essa foi parte de sua rotina de escravatura em Capela Nova, interior de Minas Gerais, ainda que, naquela época, a abolição, assinada em 13 de maio de 1888, já estivesse prestes a completar meio século no Brasil. “Meus pais sabiam que eu era escravo, mas a gente não tinha escolha”, conta Vicente, hoje aos 92 anos, sobre o período de servidão.

Nascido em 26 de julho de 1927, ele cresceu em casa de pau a pique erguida num pedaço de chão chamado Fartura. A realidade da família de oito rebentos, porém, era de fome e miséria. Os pais viviam e plantavam nas terras de um latifundiário conhecido como Capitão Justo. Em troca, eram obrigados a entregar metade da lavoura ao dono, além de ceder a força de trabalho dos filhos, muitos deles, como Vicente, que ainda eram criança.

Justo ostentava a patente de capitão, mas que foi comprada tal qual um título de nobreza. Quando o Capitão morreu, Jaci, um de seus herdeiros, tomou Vicente como seu criado na fazenda quando ele tinha apenas oito anos. “Pra quem nasceu preto, tipo eu, a escravidão continuava sendo normal. O patrão me levou pra lá e virei escravo dele, meio despistado, porque meus pais tinham medo de ser mandados embora da terra e a gente não ter mais o que comer.”

Vicente começou bem cedo a se encarregar do serviço braçal e aprendeu a fazer queijos. “Tirava leite das vacas todo dia e ficava com dois litros pra mim. Eu era escravo, mas não era bobo”, brinca. À medida que foi crescendo, desenvolveu artimanhas para ganhar uns trocados com sobras da fazenda e da partilha que sua família fornecia ao senhor. Na sede da propriedade, que preservava um tronco dos tempos de escravidão oficial, ele e outros empregados negros não podiam entrar pela porta da frente da casa. “Chamavam os negros de crioulo ou macaco”, lembra Vicente, que dormia no porão anexo ao estábulo, abrigado entre os arreios dos cavalos. “A gente tinha que passar pela cozinha pra pegar a gamela de comida.”

A refeição do dia servida na fazenda se resumia a um prato de mingau de couve ou canjiquinha. Vicente só comia carne quando algum boi morria por suspeita de contaminação. Repartia os restos com os empregados depois de tirar o couro do animal e entregar ao patrão. Certo dia, já adolescente, se desentendeu com o filho de Jaci, que tinha sua idade. Pressentiu que levaria uma surra dos senhores ao ver o garoto adentrar a sala para dedurá-lo. “Ô, pai, esse crioulo seu é valente”, ouviu do lado de fora da janela. O capataz ordenou, então, que Vicente fosse para os fundos da casa.

Precavido contra castigos, o jovem escravizado tinha comprado uma garrucha assim que conseguira juntar oito mil réis. Enquanto caminhava em direção ao terreiro, maquinou, com a arma na cintura, como daria um tiro na cabeça do patrão e outros dois na barriga do filho. “Queriam me meter o couro, mas antes ia mostrar o que acontece com quem ameaça um negro invocado”, diz Vicente, que foi obrigado a mudar de planos quando deu de cara com a viúva do Capitão Justo na porta da cozinha. “Ela me convidou pra entrar, me tratou bem e me serviu a janta. Como é que eu mato alguém depois disso?”.

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