Cercada de plantios de soja por todos os lados, a Chácara João do Mel, em Belterra, no oeste do Pará, é como uma ilha de biodiversidade que ainda reflete a natureza amazônica em um cenário formado por áreas desmatadas a perder de vista.
Mara Régia e Elizabeth Oliveira
Apesar da expressão de resistência ecológica, o pequeno oásis pertencente a João Batista Ferreira já sofre os efeitos do modelo de monocultura regada a agrotóxicos em larga escala. Esse e outros impactos socioambientais têm sido cada vez mais associados ao extermínio de abelhas e, consequentemente, à inviabilidade da produção de mel como atividade econômica desse município que integra a Região Metropolitana de Santarém, a 724 km de Belém.
Aos 59 anos, Ferreira passa por uma mudança de rumo profissional jamais imaginada para quem transformou um hobby, aprimorado desde a adolescência, em um bem-sucedido negócio de meliponicultura (cultivo de abelhas nativas sem ferrão) que o tornou conhecido regionalmente como João do Mel.
Ele recorda que há 20 anos tinha mais de mil colmeias, abrigadas em caixas de madeira padronizadas que foi aprendendo a confeccionar a partir dos 17 anos. Estrategicamente espalhadas pela propriedade de 16 hectares, cada uma chegava a ter de 80 mil a 100 mil abelhas jataí, jandaíra e outras espécies nativas.
Conhecedor dos nomes científicos e principais hábitos das abelhas, o ex-produtor diz que as chamadas de canudo (ou tucano) eram campeãs de produtividade.
“Produziam de 5 a 6 kg, por caixa. Mas, atualmente, a produção de cada uma não rende nem meio quilo”, calcula, relacionando esse declínio à expansão gradativa da soja nas últimas duas décadas na região.
E acrescenta que o agronegócio mudou o comportamento e a dinâmica de reprodução desses polinizadores. “Quantas vezes encontramos caixas completamente vazias ou enxames mortos.” Assim, o sonho de manter essa atividade comercial ruiu completamente depois de 40 anos.
Com cerca de 100 caixas que restaram na chácara, João do Mel admite que naquele “cemitério de colmeias” jaz a meliponicultura como atividade de reconhecida importância socioeconômica e ambiental.
As pequenas quantidades de abelhas que resistem precisam se alimentar do próprio mel produzido nas últimas colmeias que ele mantém somente para nutri-las. “Se tirar o mel o enxame se acaba”, explica, acrescentando que além da redução da quantidade de áreas de florestas e, consequentemente, das floradas das quais dependem esses e outros polinizadores, a situação piora na temporada de chuvas intensas na Amazônia.
Como outro reflexo do desequilíbrio ecológico regional, o ex-produtor menciona que não faltam, ainda, as investidas de tamanduás que, ao farejarem a presença de abelhas, muitas vezes rompem as tampas das caixas em busca das colmeias que restam.
Com olhos marejados e voz embargada, ele diz ainda estar sentindo o impacto emocional pelo extermínio das abelhas na sua propriedade e nas de outros produtores da região.
Argumenta, ainda, que o fracasso dessa prática tradicionalmente vinculada à cultura indígena, à agricultura familiar e à agroecologia representa um sinal de risco, principalmente à segurança alimentar, embora o problema seja pouco percebido por grande parte da sociedade.
“O agronegócio chegou como uma bomba atômica a Belterra e o seu impacto foi violento”, opina João do Mel. “O agrotóxico pulverizado nos plantios de soja se dispersa no vento e na chuva, afetando toda a cidade.”
Ele diz que os efeitos podem atingir até mesmo as árvores mais altas, cujas floradas são buscadas pelas abelhas sem ferrão. Ele se queixa da falta de fiscalização ao uso desses produtos químicos e diz que são cada vez mais comuns os casos de câncer na região, doença praticamente inexistente antes da expansão dessa cultura agrícola.
O ex-produtor afirma que enquanto a agricultura familiar é benéfica à presença de abelhas, as monoculturas, de forma geral, contribuem para ampliar a perda de habitat.
Em um passeio com a reportagem pela chácara, João do Mel fala das conexões entre fauna e flora. “A cotia passou por aqui. Veio comer tucumã”, explica mostrando as marcas das patas do animal deixadas na terra molhada e aponta para o pé de carregado, com muitos frutos já caídos pelo chão.
Apaixonado por música e poesia, ele gosta de criar inspirado nas dinâmicas da natureza. “A ecologia perdeu seu lugar. Lutar para quê, se a vida é matar ou morrer?”. diz em O lamento do João do Mel, poema que tem despertado o interesse de estudiosos e outros profissionais atentos ao que acontece na região.
Filho de pais que vieram do Ceará para trabalhar no fracassado polo da borracha da Amazônia e se radicaram em Belterra, ele deixa escapar alguns sinais de força e esperança.
Quando reconheceu a impossibilidade de tirar o sustento da produção de mel, João do Mel passou a produzir móveis e peças decorativas com restos de madeira em uma oficina que instalou na chácara. Agora se considera artesão. Também está prestes a ser pai e, ao falar sobre o filho que deve nascer em meados do ano, sorri.
Mas desanima quando indagado sobre as expectativas para o desenvolvimento da cidade que será a terra do seu filho: “Não vejo futuro nenhum em Belterra”, afirma. E se tivesse que dar um conselho para quem deseja se dedicar à meliponicultura na região? “Eu não aconselharia. É prejuízo na certa. Muitas abelhas já foram extintas e outras serão brevemente.”
Saiba mais em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52776670
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