“Os desconfinados retomarão o ciclo cronometrado, egoísta, consumista? Ou haverá um novo renascimento da vida convivial e amorosa rumo a uma civilização na qual se desenvolve a poesia da vida, onde o “eu” floresce em um ‘nós’”?
Por Edgar Morin, traduzido por Edgard Carvalho e Fagner França, no IHU Online
Todas as futurologias do século XX que previam o futuro com base nas correntes que atravessavam o presente fracassaram. Contudo, continuamos a prever 2025 e 2050 mesmo que sejamos incapazes de compreender 2020. A experiência das irrupções do inesperado na história não penetrou nas consciências. A chegada do imprevisível era previsível, mas não sua natureza. Daí minha máxima permanente: “espere pelo inesperado”.
Faço parte dessa minoria que previa catástrofes em cadeia provocadas pelo desdobramento incontrolável da mundialização tecno-econômica, incluindo aquelas que resultam da degradação da biosfera e das sociedades. De forma alguma, porém, previ uma catástrofe viral. Mas ela teve seu profeta: em uma conferência de abril de 2012, Bill Gates anunciou que o perigo imediato para a humanidade não era nuclear, mas sim sanitário. Durante a epidemia de Ebola, que por sorte pôde ser rapidamente controlada, ele viu o prenúncio do perigo mundial de um possível vírus com forte poder de contaminação. Falou sobre as medidas de prevenção necessárias, dentre elas equipamento hospitalar adequado. Mas, a despeito desta advertência pública, nada foi feito nos EUA nem em lugar algum. Isso porque o conforto intelectual e o hábito odeiam mensagens incômodas.
Em muitos países, na França inclusive, a intensa estratégia econômica dos fluxos, ao substituir a da estocagem, deixou nosso dispositivo sanitário desprovido de máscaras, instrumentos de teste e aparelhos respiratórios. Acresça-se a isso a doutrina liberalizante e comercial com relação à saúde, que reduz verbas e contribui para o avanço catastrófico da epidemia.
O desafio da complexidade
A presente epidemia produz um festival de incertezas. Não estamos seguros da origem do vírus: se foi o mercado insalubre de Wuhan ou o laboratório vizinho. Não sabemos ainda as mutações que o vírus sofreu e poderá sofrer durante o curso de sua propagação. Não sabemos quando a epidemia refluirá ou se o vírus permanecerá endêmico. Não sabemos até quando, nem até que ponto, o confinamento nos submeterá a proibições, restrições, racionamentos. Não sabemos quais as consequências políticas, econômicas, nacionais e planetárias das restrições causadas pelos confinamentos. Não sabemos se devemos esperar o pior, o melhor, ou uma mistura dos dois: caminhamos na direção a novas incertezas. Os conhecimentos multiplicam-se exponencialmente de tal forma que ultrapassam a capacidade de nos apropriarmos deles; lançam, sobretudo, um desafio para a complexidade: como confrontar, selecionar, organizar os conhecimentos de forma adequada, ao mesmo tempo religando-os e integrando as incertezas. Para mim, isso revela mais uma vez a insuficiência do modo de conhecimento que nos foi inculcado, que nos faz separar o que é inseparável e reduzir a um único elemento aquilo que é ao mesmo tempo uno e diverso. De fato, a importante revelação dos impactos que sofremos é que tudo aquilo que parecia separado está conectado, porque uma catástrofe sanitária envolve integralmente a totalidade de tudo o que é humano.
É trágico que o pensamento disjuntor e redutor reine soberano em nossa civilização e detenha o comando tanto na política e na economia. Essa desastrosa insuficiência nos conduziu a erros de diagnóstico, de prevenção, assim como a decisões aberrantes. Acrescento que essa obsessão dominante pela rentabilidade entre nossos governantes e que conduz nossa economia é responsável, repito, pelo abandono dos hospitais bem como da produção máscaras na França. Do meu ponto de vista, as carências no nosso modo de pensar, aliadas à dominação incontestável de uma sede desenfreada de lucro, são responsáveis por inúmeros desastres humanos incluindo aqueles que vêm ocorrendo desde fevereiro de 2020
Potência e impotência da ciência
É mais que legítimo que a ciência seja convocada pelo poder para lutar contra a epidemia. A princípio tranquilizados, sobretudo por causa do uso da cloroquina defendido pelo professor Didier Raoult, os cidadãos se defrontaram depois com opiniões diferentes e até mesmo contrárias. Os cidadãos mais informados descobriram que alguns renomados cientistas mantêm estreitas relações com a indústria farmacêutica, que possuem lobistas poderosos junto aos ministérios e meios de comunicação, capazes de inspirar campanhas para ridicularizar ideias inconvenientes. Lembremos do professor Luc Montagnier que, contra pontífices e mandarins da ciência foi, juntamente com alguns outros colegas, o descobridor do HIV, o vírus da aids.
Esta é a ocasião para compreender que a ciência, diferente da religião, não tem um repertório de verdades absolutas e que suas teorias são biodegradáveis sob efeito de novas descobertas. As teorias aceitas tendem a se tornar dogmáticas nas cúpulas acadêmicas, e são os desviantes, de Pasteur a Einstein, passando por Darwin e Crick e Watson, os descobridores da dupla hélice de DNA, que fazem com que as ciências progridam. É por isso que as controvérsias, longe de serem uma anomalia, são necessárias a tal progresso.
Mais uma vez, frente ao desconhecido, tudo progride por tentativa e erro, assim como por inovações desviantes, a princípio incompreendidas e rejeitadas. Esta é a aventura terapêutica contra o vírus. Os remédios podem aparecer aonde ninguém esperava. Em decorrência disso, seria necessário um verdadeiro debate sobre o antagonismo entre prudência e urgência, ao invés da velha dicotomia daqueles que se prendem a apenas uma das partes: a prudência corre o risco de aumentar o número de vítimas por falta de testes confiáveis; a urgência, por sua vez, pode subestimar os efeitos secundários de um tratamento que tem obtido bons resultados imediatos. Qualquer que seja a decisão, trata-se de um desafio na qual cada escolha comporta um perigo de perdas de vidas humanas.
Mais uma vez as incertezas. Lembremos que a ciência é devastada pela hiperespecialização, que implica o fechamento e a compartimentalização de saberes especializados, ao invés de promover sua comunicação. E são sobretudo os pesquisadores independentes que estabeleceram desde o início da epidemia uma cooperação que agora se amplia entre infectologistas e médicos de todo o planeta. A ciência vive de comunicações, qualquer tipo de censura a bloqueia. Devemos, portanto, conceber as potências e impotências da ciência contemporânea.
Incertezas e dinâmicas da crise
Em meu ensaio Sobre a crise, tentei mostrar que uma crise, para além da desestabilização e da incerteza que acarreta, se manifesta pela insuficiência das regulações de um sistema que, para manter sua estabilidade, inibe ou repele os desvios (feedback negativo). Deixando de ser repelidos, os desvios (feedback positivo) transformam-se em tendências ativas que, se desenvolvidas, ameaçam cada vez mais desregular e bloquear o sistema em crise. Nos sistemas vivos, sobretudo os sociais, o desenvolvimento vitorioso dos desvios convertidos em tendências conduz às transformações, regressivas ou progressivas, ou mesmo a uma revolução.
A crise em uma sociedade suscita dois processos contraditórios. O primeiro estimula a imaginação e a criatividade em busca de soluções novas. O segundo se concentra no retorno a uma estabilidade passada, seja a adesão a uma salvação providencial, ou a denúncia ou imolação de um culpado. O culpado pode ter cometido erros que levaram à crise, ou pode ser um culpado imaginário, bode expiatório que precisa ser eliminado. Manifesta-se, efetivamente, um fervilhar de ideias em busca de uma nova Via ou de uma sociedade melhor.
As ideias desviantes e marginalizadas se propagam desordenadamente: retorno à soberania, Estado-providência, defesa dos serviços públicos contra as privatizações, realocações, desmundialização, anti-neoliberalismo, necessidade de uma nova política. Pessoas e ideologias são designadas como culpadas.
Na carência dos poderes públicos, identifica-se também uma profusão de imaginações solidárias: produção alternativa para a falta de máscaras por empresas reconvertidas ou por confecções artesanais, reagrupamento de produções locais, entregas gratuitas em domicílio, ajuda mútua entre vizinhos, alimentação gratuita aos sem-teto, cuidado das crianças.
Além disso, o confinamento estimula as capacidades auto-organizadoras para remediar, por meio de leituras, música se filmes, a perda da liberdade de deslocamento. Desse modo, autonomia e inventividade são estimuladas pela crise.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/edgar-morin-e-as-perguntas-sem-resposta-de-nosso-labirinto/
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