Um dos maiores autores argentinos do século XX, também doutor em Física Quântica, refletia: ao perder empatia com o mundo, cientistas geraram mais desigualdades. Mas, com alma coletiva, avanços tecnocientíficos podem ser atos de criação
Por Ricardo Neder
Duas poltronas na sala. Em uma delas, está Ernesto Sabato, escritor e dramaturgo; e na outra poltrona, há uma mulher, Cesaria Lagos, pesquisadora sobre história de cientistas cujas trajetórias mergulham numa linha divisória entre as humanidades e as ciências.
CL – Agradeço sua disposição em se deixar entrevistar ou seria melhor dizer, ser colhido por um olhar externo de alguém que mergulha na literatura como ofício, e que foi também físico quântico? Esse diálogo sobre práticas nas humanidades e nas ciências com cientistas e intelectuais. Precisamos nessa hora de qualidades que são estritamente humanas. Estamos nesse umbral, diante do qual trememos.
ES – É verdade que todos somos um caso problemático nesse aspecto. Apesar de físico teórico especializado em teoria quântica, nunca abandonei minha paixão pela literatura, apesar de ter-me dedicado à física e à matemática no início da minha vida profissional. Isto poderia ser visto como um caso de extrema conciliação: atuar como cientista e pesquisador e, ao mesmo tempo, ser escritor. Não foi o caso, entretanto, porque não há compatibilidade possível, quando se é da área de física e matemática e se tem paixão pela literatura.
CL – Haveria algo como um choque cognitivo?
ES – Não. É um choque de personalidade, pois todos os que se aproximam da ciência são capturados, devendo alterar ou adaptar sua personalidade a ela. Em várias ocasiões pediram que eu ingressasse na Real Academia Espanhola, mas sempre recusei. Não posso explicar em poucas palavras os motivos dessa decisão sem ofender grandes cientistas e escritores…
CL – Mas, e a academia, em geral, haveria algo que o faria mudar?
ES – Bem, esse é um problema muito complexo e do qual já falei em uma centena de páginas de ensaios. Se bem que a posição da academia tenha variado ao longo dos anos, me parece um ato desonesto modificar uma crença pela qual lutei durante toda minha vida.
CL – Os pesquisadores têm certas passagens biográficas que os obrigam a mergulhar no dilema de largar tudo… Quando não há espaço para criação ou a verdade é destruída, quando há apenas um lado que impõe sua versão, digamos, vencedora da história. Diante dessa extrema agudeza outro movimento parece arregimentar as pessoas, alguns deixam como está, outros se rebelam, uns terceiros se aferram à autodisciplina racional, pagando por isto um custo emocional. Essa autodisciplina imposta pela academia torna-se inaceitável para o espírito da nossa época.
ES – Mas para quem ela se torna inaceitável? Não devemos substituir uma disciplina ruim por outra pior. Há algo prévio à experiência acadêmica, algo que tem origem ao longo da adolescência e vida adulta cuja essência ou elemento genético distintivo é o nosso desencontro, como sujeitos, com o mundo. Ele não se resolve, apenas tentamos dar-lhe uma feição socialmente aceitável pela ciência; algo que não se equaciona jamais… Nunca poderemos apagar da memória emoções e sentimentos derivados desta percepção do desencontro agudo demais do problema político diante da verdade científica. O que tem impactos terríveis para a condição humana de todos os jovens…
CL – Parece que há algo de irremediavelmente humano na verdade, e o seu movimento nas nossas vidas cotidianas gera esse emaranhado que mencionou. Acho que foi a filosofia da negatividade que apontou que só a arte impede a verdade de nos destruir. Pergunto-me se é o sentimento, ou a vivência em torno desse emaranhado que é a verdade. Seria uma experiência estética em si mesma, ou apenas uma idiossincrasia?
ES – Talvez. Mas a condição humana não é feita apenas de idiossincrasias. Há muitas particularidades que têm sentido por si próprias e que não pedem ou exigem explicações para ser. São, simplesmente. Têm uma história ou um momento próprio. De fato a arte tem uma missão muito mais importante do que a de entretenimento. Se não entendermos isto, talvez as novas tecnologias que se preparam para serem lançadas nos próximos anos, sejam apenas repetição de um mesmo desastre, que é a televisão…
CL – Mas a emoção registra tanto a história quanto a razão instrumental. Ouvir outros sentidos é como avançar por caminhos onde não há ciência.
ES – O que marca a possibilidade de qualquer um – qualquer pessoa independente do seu tipo psicológico ao se dedicar à ciência – é que seus trabalhos poderão, mais cedo ou tarde, ter implicações práticas e nesse sentido há um positivismo básico na ciência. Implicações de ordem pragmática são geradas por outra ordem de implicância, originada de dados genéricos. Porém, o motivo psicológico que fez o cientista se mover neste ou naquela ordem de implicância está orientado por outros sentidos. A ciência não se altera pelo que os outros sentidos dizem…
CL – Somente os registros da ciência, ou tidos como tal, têm validade, é claro. Ou não há encontro entre validade e verdade, ou a verdade encontra-se divorciada de validade, fato de percepção, razão de espontaneidade da criação. Fico me perguntando onde está a empatia que no fundo é uma luta sem desespero contra a morte?
ES – Definir assim a empatia talvez ajude a nos aproximar dos outros. Mas essa questão deixou de ser respondida pelos homens de ciências… Somos nós, os herdeiros do humanismo em crise, que precisamos fazê-lo com base na literatura e nas artes…
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/ernesto-sabato-e-a-potencia-humana-que-falta-a-ciencia/
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