Para José Vicente, reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, a sociedade precisa criar uma “barricada” para “dizer um basta” à violência policial sofrida por jovens negros e periféricos no Brasil.
Por Leandro Machado
“Como indivíduos e sociedade, não tem outra ação ou postura que não seja a de dizer um basta. É indispensável que nos juntemos para dar um salto civilizatório contra esse tipo de prática que remonta a tempos do primitivismo”, afirmou em entrevista à BBC News Brasil.
Desde junho, Vicente tem liderando o “Movimento AR”, uma mobilização voluntária que visa “realizar mudanças e transformações sociais por meio de ações efetivas de combate ao racismo, preconceito e discriminação racial contra negros.”
Entre o membros do grupo, há intelectuais e formadores de opinião, como a especialista em educação Claudia Costin, o economista Luiz Carlos Bresser Pereira e a empresária Luiza Helena Trajano.
Além disso, Vicente escreveu um manifesto com críticas à atuação policial e de empresas privadas de segurança contra jovens negros e moradores da periferia. “Chegamos ao limite do que nos separa da irracionalidade”, afirmou ele, sobre operações em que policiais foram flagrados agredindo pessoas negras já sob custódia.
Vicente, de 60 anos, nasceu em Marília, interior de São Paulo, e chegou a trabalhar como boia-fria antes de se formar em Direito — ele também é doutor em Educação.
Vicente é um dos fundadores da Zumbi dos Palmares, instituição criada em 2004 como a primeira (e até agora única) faculdade negra do Brasil. Com sede em São Paulo e 1.500 estudantes — 80% deles negros —, a faculdade tem cursos de Direito, Comunicação e Administração.
Confira a entrevista abaixo.
BBC News Brasil – O sr. tem participado de encontros com autoridades e formadores de opinião para discutir violência policial, principalmente contra a população negra. O que o sr. tem dito nessas reuniões?
José Vicente – Digo que chegamos ao nosso limite civilizatório. Ou temos a capacidade de nos rebelar contra esse destino manifesto ou não teremos um legado para os que virão: não vamos olhar para as futuras gerações sem nos sentirmos como um bando de incompetentes e covardes.
Como indivíduos e sociedade, não tem outra ação ou postura que não seja a de dizer um basta. É indispensável que nos juntemos para dar um salto civilizatório contra esse tipo de prática que remonta a tempos do primitivismo social e político.
A polícia está pisando no pescoço de uma mulher, mãe e avó, na frente dos seus filhos e netos, de uma maneira injustificada, desnecessária, opressiva e criminosa. E ninguém está levantando contra isso: nem a corporação, nem o Estado nem as pessoas que são mais aguerridas na defesa de dignidade humana. Ninguém está se rebelando contra esse tipo de coisa.
Por isso que digo que chegamos ao limite do que nos separa da irracionalidade.
BBC News Brasil – Como as pessoas que o sr. conversa têm reagido?
Vicente – De uma maneira bastante responsável e coerente. Querem juntar forças para fazer os encaminhamentos que a situação exige.
Os grupos que se formaram no entorno desse ‘Movimento AR’ são pessoas da sociedade que tradicionalmente não estavam agrupados dentro dessa agenda. Mas agora elas entenderam que precisavam dar um passo adiante, que era criar um grande grupo de formadores de opinião em uma barricada contra esse estado de coisas.
Nas conversas, existe pelo menos uma convergência de que chegamos ao fundo do poço e de que precisamos dar um salto em todas as direções. Mas principalmente no que diz respeito às ações das forças de segurança em relação ao jovem negro.
BBC News Brasil – ‘Não consigo respirar’ é uma frase que tem dita por pessoas que sofrem esse tipo de violência. O sr. acha que essa frase (dita por George Floyd, americano negro morto por um policial branco) também tem um sentido simbólico para o negro no Brasil?
Vicente – O nome movimento capta justamente esse fio condutor do racismo e da discriminação sinuosa em nosso país. Ao final, o joelho, os braços ou coturnos visíveis, mas também os invisíveis, produzem o mesmo resultado.
Ou seja, eles asfixiam, sufocam e trucidam. Eles impedem que nós, negros, possamos respirar livremente e ter uma vida regular e normal, usufruindo do Estado democrático de direito como qualquer cidadão.
Essa asfixia se manifesta nos indicadores sociais e econômicos. No Brasil, as comunidades e periferias viraram bantustões (território separado para negros da África do Sul durante o apartheid). Sair de lá e atravessar a linha demarcatória pode significar o risco de você ter sua vida eliminada pela força policial.
Ou, dentro dessas comunidades, você pode ter sua vida eliminada por não ter nenhuma instituição do Estado do seu lado: você não tem a escola de qualidade, não tem posto de saúde, cultura, a segurança…
De um lado você está entregue às milícias e aos Comandos Vermelhos; do outro, quando você passa do limite demarcatório, encontra uma polícia que te agride, vilipendia e desumaniza gratuitamente, só porque você é negro.
BBC News Brasil – Um comandante da Rota (pelotão de elite da PM paulista) disse em entrevista que a polícia não pode agir em bairros de periferia da mesma forma que atua em bairros nobres…
Vicente – Agora, a polícia chegou ao absurdo de agredir as pessoas à luz do dia e na frente das câmeras. Um policial pisou no pescoço de uma mulher de 52 anos na frente dos netos, e com todo mundo filmando.
O código é o seguinte: ‘não adianta vocês filmarem ou se rebelarem, porque a lei quem determina sou eu’, a despeito de existir o Estado.
Imagina se essa polícia pega alguém do Morumbi (bairro rico de São Paulo)…
Saiba mais em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53467921
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