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E se Brecht fosse Negro?

No posfácio de Black Brecht, livro provocador, perguntas: Sua obra seria lida numa perspectiva que articulasse classe, raça e gênero? Como construir, hoje, espetáculo sobre a diáspora afro-brasileira, a partir de seus textos e procedimentos?

Por Eugênio Lima

“E se Black fosse Brecht, Negrxs seria.
Eu derrubo qualquer Eugenia
Palavra Negra é a minha Magia”

– Dione Carlos, Black Brecht

Esta foi uma jornada em direção ao nosso desejo de autorrepresentação:

Quando falo de autorrepresentação, refiro-me a um posicionamento artístico, no qual as posições e as visões de mundo são matéria indissociável da construção artística, ou seja, a obra de arte como meio específico da vida e do discurso político do artista; que de posse da sua história pessoal, a utiliza para um exercício de socialização de sua vivência transformando sua experiência individual na vivência do coletivo, sendo desta forma catalisador de uma história ancestral, tal como o xamã ou o flâneur. Ritualizando sua experiência, consegue representar-se, da mesma forma que através do rito coletivo consegue sentir-se representado no conjunto da sociedade.1

Para que isso pudesse ocorrer no nosso caso era preciso enegrecer Brecht.

Começamos este processo com duas imersões abertas ao público durante a nossa ocupação no Novembro Negro em 2017 no Sesc Pompeia. Um processo de 10 dias de trabalho que culminou com uma tomada do próprio espaço: um Devir Negro, com cerca de 30 performers pretxs. Ainda não sabíamos como seria viabilizada a montagem do espetáculo.

Em junho de 2018 fomos contemplados com o prêmio Zé Renato de apoio à produção e desenvolvimento da atividade teatral para a cidade de São Paulo. E a partir daí, durante nove meses o grupo Legítima Defesa se debruçou sobre aquilo que começou como uma provocação: E se Brecht fosse negro?

Se Brecht fosse negro, qual seria o lugar ocupado pela raça? Sua obra seria lida por uma perspectiva interseccional? Unindo classe, raça e gênero? Seria possível construir um espetáculo sobre uma perspectiva afro-brasileira diaspórica da obra e dos procedimentos de Brecht?

Como unir os diversos materiais disparadores?

O Julgamento de Luculus, Bertolt Brecht; Estudos Sobre o Teatro, Bertolt Brecht; Poemas 1913-1956, Bertolt Brecht; A Crítica da Razão Negra, Achille Mbembe; Discurso Sobre o Colonialismo, Aimé Césaire; Pode o Subalterno Falar?, Gayatri Chakravoty Spivak; A Elite do Atraso, Jessé de Souza; Necropolítica, Achille Mbembe; A Liberdade É uma Luta Constante, Angela Davis; Metamorfoses do Espaço Habitado, Milton Santos; e Sinhá Rosa, Maurinete Lima.

Chegamos a uma primeira conclusão: a de que para enegrecer a questão, seria necessário criar uma outra voz, mudar o sujeito do poema, reescrever a narrativa para que o nosso Black Brecht pudesse surgir.

Depois dos primeiros passos, foi necessário encontrar a voz que conduziria a escrita para que o testemunho e a narrativa do negro Brecht pudesse ter pouso e morada. A parceria com a dramaturga Dione Carlos, foi o encontro que deu forma à narrativa.

Encontro e Escritura

O encontro com a dramaturgia de Dione Carlos deu a forma e a intenção do projeto, nos guiou aos rastros deixados pelas nossas ancestrais. A escritura tem de um lado a ideia-força de um poema rasgado com muitas camadas, e de outro lado o tom agudo das vozes soterradas, afogadas e violentadas pela história colonial.

A voz guia como resíduo é sempre feita em legítima defesa, ela é uma história-rasgo, na qual, do silêncio forçado, do que não foi dito, nasce o grito poético das memórias por trás da máscara de flandres.

Na escritura de Dione Carlos a poética extrapola os limites de tempo, clima ou nacionalidade. É um olhar sobre o futuro, carregando seus mortos, é ancestralidade contemporânea; nela a memória é feita de lacunas e são essas lacunas da diáspora negra que dizem quem somos e/ou do que fazemos parte.

E sem impor é ao mesmo tempo estrutural e fugidia, é o avesso do essencialismo sistemático – centro da desumanização, fruto da mentalidade colonizadora –, pois foi ele, o colonizador, que interditou a humanidade de todxs no mundo vivos. Colonialismo é Nazismo, já dizia Aimé Cesaire.

E em 2020 ainda estamos envoltos nisso, o colonialismo é uma realidade e o racismo é o seu sistema. Ninguém foge da história – e como disse Sasportas: “Nossa escola é o tempo, ele não volta atrás e não há fôlego para a didática, quem não aprende também morre“.

Interrupções, lacunas, perdas.

Lá vem os navios vindos de África
Lá vem as embarcações trazendo gente humana.
Lá vem os mandingueiros.
Lá vem as rezadeiras.
Com saias bordadas pela velha senhora.

Senhora de Muzunga.
Senhora de Malê.
Senhora de Bezu.
Senhora de África.
Senhora do tempo antes do tempo.

– Eugênio Lima, Olinda, Igreja da Sé , 11-03-2018.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/e-se-brecht-fosse-negro/

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