Apenas 0,7% das propriedades têm área superior a 2.000 hectares (20 km²), mas elas, somadas, ocupam quase 50% da zona rural brasileira
Ricardo Westin
Há exatamente 170 anos, o Brasil tomou uma medida que seria determinante para a sua histórica concentração fundiária. Em 18 de setembro de 1850, o imperador dom Pedro II assinou a Lei de Terras, por meio da qual o país oficialmente optou por ter a zona rural dividida em latifúndios, e não em pequenas propriedades.
Atualmente, apenas 0,7% das propriedades têm área superior a 2.000 hectares (20 km²), mas elas, somadas, ocupam quase 50% da zona rural brasileira. Por outro lado, 60% das propriedades não chegam a 25 hectares (0,25 km²) e, mesmo tão numerosas, só cobrem 5% do território rural. Os dados são do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Antes de chegar às mãos de dom Pedro II, a primeira lei agrária do Brasil independente percorreu um lento e tortuoso caminho dentro do Senado e da Câmara. O projeto da Lei de Terras entrou no Parlamento em 1843, baseado num anteprojeto redigido por conselheiros do imperador. Após sete anos de debates, negociações, impasses e reviravoltas, os senadores e deputados enfim deram ao projeto de lei a versão definitiva.
Documentos da época hoje guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, revelam como a composição do campo brasileiro foi planejada. Os próprios senadores e deputados eram, em grande parte, senhores de terras. O senador Costa Ferreira (MA), por exemplo, discursou:
— Isso de repartir terras em pequenos bocados não é exequível. Só quem nunca foi lavrador é que pode julgar o contrário. São utopias. Ninguém vai para lá [o interior do país]. Ninguém se quer arriscar.
O argumento dele era que os pequenos camponeses não tinham força para expulsar os indígenas e que, por isso, era natural que a terra fosse para os grandes senhores. Costa Ferreira continuou:
— Existem nas províncias muitas terras, mas algumas não se acham demarcadas nem são beneficiadas porque estão infestadas de gentios [indígenas]. Nas minhas fazendas já tenho tido alguns prejuízos por essa causa em gado, escravos etc. A maior parte dos [pequenos] lavradores da minha província não lavra para o interior porque o gentio não os deixa. Mas um lavrador poderoso, logo que entra, pode beneficiar as terras. Muito lucra, pois, a nação em se venderem as fazendas nacionais a particulares que as cultivem.
Na época do Império, embora o Brasil fosse agrário e dependesse da renda gerada pela exportação do café, a zona rural estava mergulhada no caos e na insegurança jurídica. Ao contrário de hoje, poucos eram os fazendeiros com o registro da propriedade. Eles eram os donos das chamadas sesmarias, terras doadas de papel passado pelo rei português, ainda nos idos da Colônia, com a exigência de que fossem cultivadas. Sendo extensas demais e tendo só um pedaço efetivamente explorado, as sesmarias viviam sob o constante risco de serem confiscadas.
Em 1823, logo após a Independência, dom Pedro I proibiu a doação de novas sesmarias, mas não pôs no lugar nenhuma nova regra para a apropriação da zona rural. No vácuo legal, as pessoas começaram a invadir as terras públicas desocupadas. Nesse Brasil despovoado, ainda longe dos 10 milhões de habitantes (hoje são 210 milhões), havia terras livres de sobra. Assim, por meio da simples ocupação, surgiram humildes camponeses cultivando para a própria subsistência e também poderosos latifundiários plantando para a exportação.
Na ausência do título oficial da propriedade, tanto pobres quanto ricos não passavam de posseiros e, como tais, também corriam o risco de terem a terra confiscada a qualquer momento. Enquanto os sesmeiros eram minoria, os posseiros eram maioria.
— No Brasil, têm sido esbanjadas as terras — queixou-se o senador Bernardo Pereira de Vasconcellos (MG). — Só não é proprietário o que não quer ser. Depois da suspensão das sesmarias, qualquer apodera-se de terreno devoluto, fixa nele sua residência, planta, colhe e ninguém lhe disputa.
Para o senador Vergueiro (MG), o problema eram apenas os pequenos posseiros:
— Se não se puser obstáculo a essas invasões, apenas restarão algumas terras devolutas nas províncias do Pará, de Mato Grosso e de Goiás [as atuais Regiões Norte e Centro-Oeste inteiras]. Para as mais, acabam-se em pouco anos. E será isso útil? Não, é prejudicialíssimo não só aos interesses do Tesouro, mas da civilização, porque essa gente espalha-se pelo meio do sertão e barbariza-se, não reconhece autoridades senão as suas paixões.
O senador Carneiro Leão (MG) concordou. Na visão dele, apenas os grandes posseiros eram dignos da proteção pública:
— Em presença da inércia, do desleixo do governo, a população cansou-se de esperar e entrou sem mais cerimônia pelas terras da nação, prestando assim um verdadeiro serviço ao país, pois contribuiu para o aumento e progresso da lavoura. Não se pense que todas as posses se reduzam a uma pequena roça e à construção de uma casinha de palha. A princípio podia ser assim, mas depois em boa parte delas estabeleceram-se grandes plantações.
Para completar o caos fundiário do Império, não existiam limites claros entre uma terra e outra. Os sesmeiros evitavam a demarcação porque os técnicos que mediam os terrenos eram escassos e careiros. Os posseiros, por sua vez, porque não tinham escritura. Em razão das divisas nebulosas, os conflitos entre vizinhos eram corriqueiros.
— Há nas terras muitas posses de muitos donos. Cada um deles fixa os seus limites arbitrariamente. Quando há contestações, a questão quase sempre se decide pelo bacamarte [espécie de espingarda] — afirmou o senador Francisco de Paula Souza (SP). — Agora mesmo tenho notícia de que na Vila da Constituição [atual Piracicaba], em São Paulo, nos últimos meses houve 13 ou 14 assassinatos em consequência de questões de terras. Eu estou convencido de que esta lei é sumamente necessária, principalmente para prevenir os abusos e as violências que se praticam no interior.
Para tentar pôr alguma ordem no campo, o primeiro artigo da Lei de Terras dizia que não mais se toleraria a invasão de terras públicas. Quem desobedecesse a lei iria para a cadeia. A partir de então, elas seriam vendidas. No entanto, haveria uma anistia geral para quem vivia na corda bamba até aquele momento.
— Ora, se devemos providenciar para o futuro e passar uma esponja sobre o passado, essa esponja deve abranger posseiros e sesmeiros — defendeu o senador Vergueiro.
Dessa forma, os fazendeiros que haviam descumprido a exigência de cultivar suas sesmarias seriam perdoados, e os posseiros que tinham se assenhorado de terras que não lhes pertenciam ganhariam a escritura. Seria algo parecido com o que hoje se chama de regularização fundiária, recorrente em terras públicas ocupadas por particulares na Amazônia.
Na prática, porém, a anistia de 1850 alcançaria apenas os grandes posseiros. Os pequenos acabariam sendo barrados.
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