No Dia Latino-Americano e Caribenho pela Descriminalização e Legalização do Aborto, celebrado a cada 28 de setembro, e ainda sob o impacto provocado pelo caso da menina de 10 anos de idade, do Estado do Espírito Santo, que padeceu uma saga para ter garantido seu direito à interrupção da gestação, fruto de estupro, convém observar a relação umbilical existente entre políticas de cunho moral e políticas de cunho financeiro no Brasil do bolsonarismo. Neste artigo para Carta Maior, a cientista política Barbara Dias (UFPA) argumenta como esta simbiose tem sido sustentada de modo dramaticamente estratégico e sugere a articulação entre as pautas progressistas.
Por Bárbara L. C. V. Dias
Desde o início do governo Bolsonaro e da indicação da Sra. Damares Alves como ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, muitos têm argumentado que a agenda e as políticas apresentadas por ela e seu ministério têm servido de “cortina de fumaça” para distrair as pessoas enquanto a verdadeira e importante agenda econômica e política estaria sendo aprovada sem que prestássemos atenção.
Esse debate em torno da importância dos temas que mais mobilizam o apoio a governos que se apresentam como mobilizadores de demandas populares retornaram com mais candência após a declaração do presidente Bolsonaro na reunião de cúpula da ONU ao declarar que “a ideologia invadiu até mesmo a alma humana expulsando Deus. (…) Precisamos combater a Cristofobia”. Uma disputa se estabeleceu nas redes sociais entre aqueles que entendem que os assuntos religiosos são fundamentais para a compreensão da base eleitoral do atual chefe do Executivo e aqueles que pensam que a razão é mais de ordem econômico material do que religiosa cultural.
Esta suposta tensão de pautas políticas tem diminuído em razão da publicação e divulgação de inúmeras pesquisas (1) que vêm demonstrando e explicitando a relação inequívoca e intrínseca entre políticas sobre pautas morais e de normalização do corpo e políticas sobre pautas materiais financeiras.
Mais do que mostrar essa articulação é fundamental observarmos como o Bolsonarismo (2) tem mobilizado de modo estratégico e eficiente uma afinidade eletiva específica entre essas pautas para constantemente animar sua base de apoio social e político.
Primeiro, precisamos compreender que o Bolsonarismo se insere em um determinado modelo de governo descrito por Dardot e Laval como “neoliberalismo autoritário” (3). Vale recordar que tanto Thatcher como Reagan e Pinochet realizaram suas reformas neoliberais através de alterações do que eles chamaram de políticas culturais fundamentais do núcleo moral familiar (4). Pinochet, por exemplo, criou uma junta militar responsável pela ação social para mulheres de origem pobre, gestada pela sua própria esposa. A ação visava obter o apoio e o reconhecimento das mulheres vulneráveis, reavaliando o papel tradicionalmente atribuído às mães e ensinando-as a administrar o orçamento familiar para que elas pudessem alimentar uma família com recursos limitados (5). Como não lembrar das habituais declarações de Reagan e Thatcher de que as nações civilizadas repousam sobre a autoridade natural da família, da escola e da igreja? Afinal, para Thatcher, “a sociedade não existe”, apenas existem os indivíduos responsáveis perante suas próprias ações e (in)competências, e suas pequenas células sociais, mais fáceis de controlar e governar de que estruturas sociais mais complexas e mais competentes para disputar o espaço político e o campo governamental (partidos, sindicatos etc.). (6)
O conceito de neoliberalismo perde uma grande parte de sua compreensão quando utilizado de modo muito impreciso e confuso. O neoliberalismo não trata somente de políticas econômicas monetaristas ou de austeridade, e nem somente de mercantilização das relações sociais ou de monopólios de mercados financeiros. O neoliberalismo designa, fundamentalmente, um tipo de racionalidade política que se tornou hegemônico mundialmente e que consiste em impor aos indivíduos, aos governos, às sociedades e ao próprio Estado uma lógica de conversão específica de formas de vida, subjetividades e normas de existência (7).
Teoricamente, devemos lembrar que um dos maiores defensores do ideário neoliberal, o austríaco F. Hayek, sempre afirmou em suas obras que todo projeto econômico e político é sempre um projeto moral. Nesse sentido, Wendy Brown, em sua obra Ruínas do Neoliberalismo (8), nos chamou a atenção para o fato de que o ideal normativo do neoliberalismo tem como fim a naturalização das hierarquias e das injustiças sociais. E que, para a concretização desse ideal, é essencial a eliminação de movimentos, discursos, grupos e pessoas que defendam a expansão democrática do acesso a recursos simbólicos e materiais na esfera pública.
Melinda Cooper já insistia, em Valor da Família (9), como a teoria do capital humano do neoliberalismo, desenvolvida por Gary Becker nos anos 60, implica em ver o investimento privado e familiar na educação das crianças como uma alternativa ao investimento público Ao fazê-lo, os mecanismos do Estado de Bem Estar Social serão desativados e a própria ideia de “justiça social” será atacada. Por outro lado, a aplicação da teoria do capital humano à família, elaborada por Becker em seu Tratado sobre a Família (10), também servirá como um instrumento para desacreditar as exigências da esquerda contra-cultural e suas exigências de libertação sexual.
Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-horizonte-antipolitico-do-Bolsonarismo/4/48851
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