Com quase 90% das urnas apuradas, 78% dos chilenos votaram por uma assembleia constitucional que ponha fim à última grande herança da ditadura
Rocío Montes
O Chile escolheu este domingo superar a herança mais pesada de Augusto Pinochet, a Constituição vigente. Os cidadãos aceitaram a oferta das instituições políticas de iniciar um caminho constituinte para canalizar o descontentamento, que explodiu em forma de protesto e violência há exatamente um ano, em outubro de 2019. Os primeiros resultados oficiais, com 90% das urnas apuradas, confirmam uma vitória esmagadora daqueles que querem mudar a carta fundamental: 78%, contra 22% que rejeitaram a ideia de substituí-la.
Também foi contundente a escolha do organismo que a redigirá a convenção constitucional, composta por 155 pessoas que serão especialmente eleitas no próximo mês de abril, que terá um caráter paritário entre homens e mulheres. Essa alternativa alcança 79% das preferências, contra 21% que optaram pela convenção mista, que seria composta por 172 membros, entre cidadãos e parlamentares. “Hoje os cidadãos, a democracia e a paz venceram a violência”, disse o presidente Sebastián Piñera na noite de domingo no palácio de La Moneda, acompanhado por todo o seu gabinete.
Foi uma jornada em que o Chile mostrou sua cultura cívica e, à noite, centenas de pessoas se reuniram na região da Praça Itália, no epicentro das concentrações em Santiago. Embora nos últimos anos o país sul-americano tenha alcançado recordes regionais de abstenção junto com a Colômbia, uma alta participação era esperada neste domingo. A tendência das últimas eleições de baixa participação –que chegou a um mínimo de 36% nas municipais de 2016– foi parcialmente revertida neste dia, apesar da crise sanitária, que nesta semana ultrapassou 500.000 casos no Chile e matou 13.944 pessoas desde março. Com 9.748 pacientes com covid-19 em fase ativa, os protocolos sanitários implantados pelas autoridades para evitar a propagação do vírus conseguiram convencer a população a ir às urnas sem medo.
O movimento chileno não é liderado pelas instituições clássicas, como partidos e sindicatos. Portanto, nenhuma força política poderia reivindicar uma vitória que, acima de tudo, foi protagonizada pelos cidadãos.
A diferença entre os que aprovaram e rejeitaram a ideia de substituir a Constituição vigente não constitui, portanto, um espelho da correlação de forças entre o situacionismo do Governo de direita de Sebastián Piñera e a oposição. Entre os que votaram por um novo texto também fazem parte os eleitores de direita, não apenas de esquerda e de centro-esquerda, embora aqueles que se opuseram à mudança sejam principalmente da direita doutrinária. Na segunda-feira, portanto, começa a verdadeira batalha na política chilena com vistas à eleição dos 155 convencionais no próximo dia 11 de abril, em menos de seis meses.
O situacionismo parece em melhores condições do que a oposição para esta nova etapa. Embora até hoje tenham coexistido duas almas neste setor –as que aprovavam e rejeitavam uma nova Constituição–, existem os acordos necessários para chegarem unidos até abril, quando serão eleitos paralelamente prefeitos, vereadores e, pela primeira vez, governadores regionais. O mesmo não acontece com a oposição, onde algumas das forças de esquerda –tanto o Partido Comunista quanto a Frente Ampla– têm dificuldades para negociar com os setores moderados, que conformaram a Concertação (1990-2010). Portanto, dificilmente conseguirão uma lista única, o que aumenta as possibilidades de conseguirem os 2/3 necessários para aprovar os conteúdos da nova Constituição.
Embora seja fictício pensar que todos os que aprovaram a mudança na Constituição pertençam à oposição –a direita no Chile tem muitos eleitores–, no Governo não deixaram de preocupar nem os discursos políticos dos líderes oposicionistas nem a reação das ruas. No palácio de La Moneda não se desvaneceu o temor de possíveis revoltas por parte daqueles que não entendem o referendo e o interpretam como um plebiscito de revogação contra Piñera, como se insinuou em alguns setores.
Após a eleição dos convencionais em 11 de abril, no mais tardar em meados de maio de 2021, o presidente Piñera deve convocar a sessão de instalação da convenção, cujo lugar de funcionamento ainda não foi definido. A instalação deve ocorrer dentro dos 15 dias posteriores, ou seja, entre maio e o início de junho de 2021. Depois, em sua primeira sessão, a convenção deve eleger a presidência e a vice-presidência. A partir desse momento terá início um prazo de nove meses para redigir e aprovar o texto constitucional que deverá ser ratificado em novo plebiscito, desta vez de caráter obrigatório. Esse prazo de nove meses pode ser prorrogado, apenas uma vez, por três meses. Portanto, o novo texto constitucional deve estar finalizado, no máximo, até o início de junho de 2022. Nessa data, um novo presidente estará governando o Chile.
As imagens que foram vistas hoje nas ruas, nas redes sociais e na imprensa –longas filas espera para entrar nas seções eleitorais no Chile e no exterior– antecipavam uma alta participação. O referendo foi realizado com uma primeira onda da covid-19 ainda ativa e com um detalhado protocolo sanitário, razão pela qual os eleitores compareceram aos 2.715 locais disponíveis seguindo as recomendações. Nem a pandemia nem a violência de uma semana atrás detiveram a participação.
Saiba mais em: https://brasil.elpais.com/internacional/2020-10-26/maioria-esmagadora-dos-chilenos-vota-por-enterrar-a-constituicao-de-pinochet.html
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