No Grajaú, em SP, ela faz faculdade, sustenta a casa e cuida dos pais incapacitados. Dependia do auxílio, assim como outras milhões de famílias. Passou por humilhações: filas, burocracias e recusa. Hoje, valor sequer paga conta de luz
Por Karine Gomes
Quando as primeiras notícias sobre a circulação de um misterioso vírus começaram a circular, jamais imaginei que chegaria a tal proporção catastrófica. A ficha demorou a cair.
De repente, minha empresa começou a realocar todos os seus funcionários para trabalharem de suas casas. Observava o medo no olhar das pessoas e aquilo me assustava. Quando mortes diárias começaram a acontecer e, também, quando mais de 300 colegas da minha empresa foram desligados eu percebi: a pandemia chegou até mim.
Eu continuei empregada, graças a Deus, mas lamentei e muito pelas pessoas que perderam seus empregos. Enquanto a pandemia desdobrou de forma extrema a vida das pessoas, na minha a princípio não fez tanto efeito. Isso porque, em casa, sempre fui a titular. Aquela que paga as contas, sabe? Então eu já estava acostumada a viver no sufoco, racionando os gastos.
Meus pais são idosos, não têm mais condições de trabalhar e não são aposentados ainda. Minha mãe, dona Geralda Gomes, tem 65 anos, é diabética e está na fila de espera para uma cirurgia de catarata. Meu pai, seu Adílson José, com seus 56, é adoentado, tem problemas psicológicos, o que também o impossibilitou de trabalhar há muitos anos.
Para muitas famílias, a pandemia consequentemente trouxe o medo, o desemprego e a fome. Desse modo, era esperado que o governo tomasse alguma medida para que as pessoas não ficassem à mercê do caos. E é esse assunto que quero compartilhar com vocês.
O auxílio emergencial chegou para ajudar muitas famílias, inclusive a minha. O valor concedido de R$ 600 era importante. Na verdade, em partes, se compararmos os preços dos itens básicos para se viver. Mas, sobretudo, era o necessário para se manter e acredito que essa era a intenção: “nos manter”.
Logo que o programa começou, tratei de inscrever os meus pais. Ambos, segundo o critério de aprovação, tinham o direito ao recebimento. E assim se fez. A minha renda familiar subiu para R$ 2.600, somando os 2 benefícios mais o meu salário. Era uma ajuda considerável. Às vezes, me pegava refletindo sobre aquelas pessoas que estavam desempregadas, antes mesmo de tudo acontecer, ou aquelas que perderam seus empregos no decorrer da pandemia. Pensava em como esse valor poderia ajudá-las. Seria um auxílio e tanto, assim como estava sendo para mim e meus pais.
Apesar das aparentes boas intenções governamentais, sou do tipo de pessoa que gosta de contestar as coisas. O fato é que nunca me desceu algumas situações e procedimentos no processo cadastral do auxílio emergencial. Um exemplo eram os bugs que o Caixa Tem costumava apresentar. Defeitos quase que voluntários transpareciam a qualidade do aplicativo. Era como se a pessoa, ao manusear a ferramenta, fosse induzida ao erro.
Resultado?! Mais de 8 horas na fila de uma agência, debaixo de, quase sempre, um sol quente, para corrigir uma falha do próprio app. Ao reparar a fila extensa, deduzi que era impossível que mais de 100 pessoas errassem o manuseio em um único dia, somente naquela agência.
A central de atendimento, famosa 0800, que deveria prestar o atendimento ao cliente e solucionar os casos, não funcionava. Consequentemente: aglomeração e uma pessoa idosa, na época listada entre a faixa etária mais mortal do vírus, em uma fila que não saia do lugar. As pessoas repetiam a mesma frase: “Isso é uma humilhação”. Realmente era.
Era nítido o descaso com as pessoas. Quando não era no aplicativo ou na fila, era no recebimento. Para mim, soava cômico, pois o nome do benefício era emergencial, mas na hora do saque ou movimentação, tinha datas estipuladas, distantes. “Quem tem fome, tem pressa”. Segundo as justificativas, as datas eram para evitar aglomerações.
Não bastasse, ainda éramos submetidos ao preconceito de pessoas que, possivelmente, compartilhavam da mesma situação financeira. É o caso da estudante de Direito pela FMU, Joana Darc Gonçalves, de 25 anos, moradora do Jardim Ellus, região do Grajaú (Extremo Sul de São Paulo), que passou por humilhações ao comprar seus mantimentos no mercado.
Eu costumava brincar que o auxílio emergencial estava mais para ‘auxílio humilhação’, por conta de algumas situações de constrangimento que a gente passava com o aplicativo. Claro que a brincadeira satiriza a verdade: o preconceito camuflado das pessoas. Não bastasse a humilhação indireta que o sistema do aplicativo induz, ainda tínhamos que lidar com o julgamento das pessoas, muitas dessas na mesma situação que você. Lembro-me quando fui ao mercado fazer compras, tinha acabado de receber o auxílio. As notícias falavam que o saque não era permitido de imediato, mas que os beneficiários poderiam fazer compras com o valor, mediante o cartão virtual. Assim que compensou, fui ao mercado para comprar os produtos básicos de casa. Ao chegar no local, o cartão não foi autorizado. Resultado: gerente acionada, olhares tortos dos funcionários e clientes da fila e um show de constrangimento”.
Joana Darc Gonçalves, 25 anos, estudante e moradora do Extremo Sul de São Paulo
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/o-fim-dos-r-600-visto-por-uma-jovem-da-periferia/
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