Da aspirina à morfina, nossa vasta farmacopeia deriva do saber indígena e da biodiversidade. Estima-se que 30% das línguas originárias estão sob o risco de extinção – e junto, curas para uma civilização ameaçada por vírus e ignorância
Por Nurit Bensusan
As lendas e histórias sobre a magnitude da Biblioteca de Alexandria, no Egito, e a tragédia de sua destruição, por ordem do califa Omar, em 641 da Era Cristã, habitam corações e mentes há séculos. Dizem que é incomensurável o conhecimento perdido nos rolos que foram incendiados para alimentar, por cerca de seis meses, as caldeiras dos quatro mil banhos públicos da cidade. Talvez parte dos rolos perdidos tivesse cópias em outras bibliotecas, como a de Pérgamo ou em coleções particulares. Nunca vamos saber se o que se perdeu ali poderia ter nos conduzido, como espécie, a um caminho melhor, mais justo e mais feliz.
É quase certo que houve perdas monumentais de conhecimentos acumulados em diversos momentos da história da humanidade: cidades destruídas e povos exterminados pontuam nossa trajetória. Mas há outro tipo de perda, não tão visível, não tão notável, mas talvez ainda mais deletéria. Trata-se do desaparecimento do conhecimento vinculado ao uso das plantas, animais e outras espécies.
Inúmeros povos indígenas possuem vastos conhecimentos sobre usos medicinais de plantas, animais e fungos. Esse conhecimento, em geral, está vinculado a um povo ou a um pequeno conjunto de povos que compartilham uma geografia. Em uma pesquisa recente da Universidade de Zurique, na Suiça, cientistas analisaram 3.597 espécies vegetais e 12.495 usos medicinais associados a 236 línguas indígenas na América do Norte, Nova Guiné e noroeste da Amazônia e estimaram que 75% dos usos de plantas medicinais no mundo são conhecidos em apenas um idioma. A tradução imediata e preocupante disso é que se tal idioma desaparece, leva com ele esses saberes à morte.
Muitos desses povos, detentores de tais conhecimentos e falantes dessas línguas, repassam seus conhecimentos via oral e, além disso, seus idiomas não têm registro escrito. Linguistas estimam que haja atualmente no mundo cerca de 7,4 mil línguas e que 30% delas desaparecerão até o final deste século. A pesquisa da Universidade de Zurique também apontou um dado alarmante: as línguas ameaçadas sustentam mais de 86% dos saberes únicos – presentes em apenas um idioma – da América do Norte e da Amazônia e 31% dos saberes únicos da Nova Guiné.
Vale lembrar que muitas das substâncias que usamos hoje na nossa farmacopeia vieram do conhecimento indígena da biodiversidade: a aspirina, derivada da casca do salgueiro; a morfina, das sementes da papoula; relaxantes musculares e venenos poderosos, como a estricnina, derivados do curare, usado por povos indígenas sul-americanos na ponta de suas flechas como arma letal nas atividades de caça, entre inúmeros outros exemplos.
Crise dos antibióticos
Com a pandemia da Covid-19 e a presença insistente de doenças sem cura na nossa sociedade, a busca por novas substâncias ativas é uma atividade incessante. A crise dos antibióticos – que não fazem mais efeito sobre seus alvos – e das drogas contra a dor agrega a esse cenário uma urgência ainda maior. Numa entrevista recente, a diretora-geral do Laboratório Europeu de Biologia Molecular, Edith Heard, declarou que, em 10 ou 20 anos, estaremos morrendo de infecções de bactérias resistentes aos antibióticos. A geneticista chamou atenção que a crescente resistência a esses medicamentos não acontece apenas nos hospitais, mas há resistência aos antibióticos em bactérias do oceano e ainda não se sabe explicar o porquê. Vale lembrar que dobramos nossa expectativa de vida nos últimos 100 anos graças aos antibióticos. Urge que novas soluções surjam para cobrir essa lacuna e parte delas pode passar pela identificação de novas substâncias efetivas contra os micro-organismos resistentes.
A inspiração da natureza na busca por esses novos princípios ativos é um ponto fundamental e, onde há mais biodiversidade, maior chance de encontrar algo interessante. Porém, como procurar uma agulha num palheiro? Ou uma substância ativa, interessante por suas propriedades farmacológicas, no meio de uma floresta como a amazônica? É nesse momento que o conhecimento dos povos indígenas sobre plantas e animais pode fazer a diferença. Apontar a utilização de uma planta ou de uma mistura de plantas no combate a uma doença pode funcionar como um atalho relevante na identificação de novas curas.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/a-morte-da-lingua-indigena-e-dos-saberes-ancestrais/
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