Clipping

Desastres em todo o mundo podem estar interconectados

Relatório da Universidade das Nações Unidas conclui que distintas catástrofes climáticas, pandemias e outras crises podem ser geradas e agravadas por mesmos fatores. Amazônia é citada como exemplo de desastre ecológico.

Uma onda de frio no Texas; uma nuvem de gafanhotos na África Oriental; um peixe da China que, depois de sobreviver à extinção dos dinossauros, em 2020 sucumbiu irreversivelmente aos seres humanos. Embora separados por fronteiras e oceanos, e afetando espécies individuais ou ecossistemas e comunidades inteiros, desastres como esses têm mais em comum do que se percebe ou se planeja.

Essa é uma conclusão-chave de um relatório publicado nesta quarta-feira (08/09) pela Universidade das Nações Unidas (UNU). Seus pesquisadores descobriram que algumas das piores catástrofes dos últimos dois anos se superpuseram, agravando-se mutuamente. Em diversos casos, foram impulsionadas pelas mesmas ações humanas.

“Quando a gente vê desastres no noticiário, eles costumam parecer distantes”, comenta Zita Sebesvari, chefe de pesquisas da UNU e uma dos principais autores do relatório. “Porém mesmo os que ocorrem a milhares de quilômetros de distância muitas vezes estão relacionados entre si.”

Desastres se alimentam reciprocamente

Três causas básicas afetaram a maior parte dos eventos contemplados na análise da UNU: a queima de combustíveis fósseis, má gestão de risco e a falha de dar o devido valor ao meio ambiente na tomada de decisões.Volume 100% Assistir ao vídeo07:59

Algas, uma solução mágica para o clima?

Muitos dos eventos registrados estão relacionados a situações meteorológicas extremas. No Vietnã, uma cascata de nove tempestades separadas, chuvas pesadas e inundações devastaram o país em apenas dois meses. Um ciclone mortal, potencializado pela mudança climática, se abateu sobre Bangladesh em meio à pandemia de covid-19, enquanto trabalhadores cumpriam quarentena nos abrigos anticiclone.

Ocorrências como essas “se alimentam reciprocamente”, explica o também coautor do estudo da UNU Jack O’Connor: se os abrigos de emergência estão sendo usados para proteger a população de intempéries e alojar pacientes de covid-19, menos cidadãos vão poder – ou querer – utilizá-los. Quem o faz, fica mais exposto ao coronavírus.

E então quando o ciclone chega, ele danifica os hospitais e interrompe as cadeias de fornecimento necessárias ao tratamento médico. “Não se configuram as medidas contra ciclones tendo em mente uma pandemia”, nota O’Connor. “Mas é o tipo de coisa que vamos ter que começar a fazer.”

Homem combate fogo florestal
Incêndios nas matas brasileiras aceleram duplamente o efeito-estufa

O perigo dos eventos extremos compostos

O relatório da UNU chega uma semana após uma análise da Organização Meteorológica Mundial (OMM) mostrar que, nos últimos 50 anos, em média ocorreu um desastre de fundo meteorológico por dia – de furacões a secas –, matando 115 pessoas e causando perdas de 202 milhões de dólares.

Por outro lado, embora os humanos sigam queimando combustíveis fósseis e aquecendo o planeta, o saldo fatal do mau tempo extremo está diminuindo, principalmente graças aos avanços na previsão e nos sistemas de aviso precoce, os quais permitem aos governos evacuarem as populações das áreas em risco antes que as intempéries ocorram.

Assim, tormentas e enchentes devastadoras estão matando menos, porém deixando mais desabrigados. No entanto não está garantido que essa proporção vá se manter, à medida que o planeta se aquece e mais catástrofes se sobrepõem.

Segundo um relatório referencial do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) publicado em agosto, provavelmente a influência humana já vem elevando a probabilidade de “eventos extremos compostos” desde a década de 1950.

Ondas de calor e secas concomitantes, por exemplo, são mais comuns por todo o mundo. Em algumas regiões observam-se tendências semelhantes de chuvas pesadas, tormentas súbitas ou incêndios.

Caso o planeta se aqueça 4 ºC acima dos níveis pré-industriais, as ondas de calor que costumavam ocorrer a cada 50 anos podem se tornar 39 vezes mais frequentes, segundo as projeções do IPCC. O aumento atual já é de 1,1 ºC. Embora os líderes mundiais tenham se comprometido a limitar o aquecimento a 1,5 ºC até o fim do século, suas presentes políticas miram antes o dobro dessa  marca.

Três exemplos: China, Austrália, Brasil

O relatório da UNU destaca três exemplos específicos de crises ecológicas estreitamente ligadas à mudança climática. Cerca de 25% da Grande Barreira de Coral da Austrália já se branqueou gravemente em 2020, e os recifes de corais se reduzirão em 70% a 90%, caso o aquecimento global chegue 1,5 ºC. Com um acréscimo de 2 ºC, praticamente todos os corais do mundo desaparecerão.

Embora a mudança climática seja o principal fator dessa ameaça, a resiliência de um recife também depende de agravantes como a poluição e a sobrepesca, lembra O’Connor, que em seu treinamento como cientista marinho teve ocasião de ver recifes de coral antes e depois do branqueamento.

“É como Procurando Nemo, cheio de cor e vida”, compara, referindo-se ao popular filme de animação 3D. “Quando se visita um recife branqueado devido ao aumento das temperaturas oceânicas, toda a cor se foi, tudo fica branco. Mas não só isso: é como um cemitério, todos os animais foram embora.”

Na Amazônia, centenas de milhares de hectares de vegetação foram queimados para satisfazer a demanda global de carne, tanto para transformar a mata em pastos como para plantar soja para alimentar o gado. Isso reduziu o volume de poluição carbônica que a floresta era capaz de absorver. Alguns estudos sugerem que o desmatamento e o aquecimento global acelerarão a extinção da vegetação até um ponto de guinada em que a floresta tropical se transformará em savana seca.

No rio Yangtzé, China, o peixe-espátula-chinês foi exterminado em 2020, após décadas de sobrepesca, poluição e a construção de diversas represas, isolando-os de sua área de procriação, corrente acima. Como no caso dos recifes de coral, a perda de uma espécie num ecossistema pode bastar para que todo o sistema entre em colapso.

Trabalhadores observam fluxo de água do alto de barragem
Represas do rio Yangtzé geram eletricidade limpa, mas contribuíram para extinção de peixe pré-histórico

Todos podem sair lucrando?

O resultado do relatório da UNU enfatiza como os tomadores de decisões podem se concentrar num punhado de “soluções win-win“, em que todos saiam ganhando, a fim de prevenir desastres – como reduzir as emissões carbônicas ou planejar a infraestrutura com mais respeito pela natureza.

Tanto na Amazônia como no Yangtzé, observam os autores, governo e empresas alteraram as paisagens para explorar recursos economicamente valiosos, porém muitas vezes sem levar em conta os custos ambientais. O estudo também reflete sobre o custo de ignorar as conexões entre desastres e impor soluções que pioram outros extremos.

As represas que contribuíram para a extinção do peixe-espátula-chinês, por exemplo, geram energia hidrelétrica limpa, oferecendo uma alternativa à queima de combustíveis fósseis. Em alguns casos, o retorno talvez não valha a pena; em outros, políticas direcionadas podem compensar os danos. “Não podemos nos permitir mais adotar soluções míopes, que acabam saindo pela culatra mais tarde”, exorta said O’Connor. “Precisamos fazer melhor.”

Veja em: https://www.dw.com/pt-br/desastres-em-todo-o-mundo-podem-estar-interconectados/a-59125593

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