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1981: um encontro marcante com Dom Pedro Casaldáliga

São Félix não possuía porto de atracação. A mesma tábua foi posta para que os passageiros deixassem o barco, apenas nós e um monte de coisas, carga de mantimentos para a cidade que foi sendo assim retirada.

Por Rubens Sawaya

São Félix não possuía porto de atracação. A mesma tábua foi posta para que os passageiros deixassem o barco, apenas nós e um monte de coisas, carga de mantimentos para a cidade que foi sendo assim retirada. Uma rua longa de casas de comércio, pequenos galpões e mesmo moradias margeava o rio. Não era uma cidade muito pequena. Talvez umas dez travessas saíam dessa principal beira-rio adentrando ao povoado 4 ou 5 quadras adentro. Não que fosse necessário algum transporte para percorrer a cidade, mas, como sempre, carros, embora desta feita muito poucos em comparação com São Miguel, andavam por suas ruas de terra amarela. Não era fácil chegar de carro em São Félix.

Saímos em busca de Dom Pedro imediatamente. A tarde já caia e não tínhamos onde dormir. Por algumas indicações, encontramos facilmente sua casa um pouco afastada do rio, mas ainda dentro da cidade. Todos o conheciam. Batemos na porta da casa pintada de amarelo, simples. Ele não estava. Uma senhora gordinha com sua blusa florida e vestido surrado azul gentilmente nos atendeu. Dom Pedro estava fora. Sem muito perguntar nos apontou a direção do centro Comunitário. Tínhamos onde dormir.

O alojamento era grande, dois amplos quartos mais elevados sobre o nível do chão serviam para hospedar homens e mulheres em separado. Uma grande varanda à frente unia tudo, inclusive os banheiros feminino e masculino, com três chuveiros cada. À frente havia um pequeno campo de futebol e do outro lado uma casinha que servia de refeitório, onde almoçaríamos e jantaríamos por todo o tempo que lá ficássemos. A chuva molhava tudo. Como estava vazio, nos alojamos em um dos quartos, os dois juntos subvertendo a separação sexual, tomando duas camas de baixo (embora usássemos apenas uma) dentre cerca de 5 beliches dispostos em filas. Não que não aparecesse ninguém ou que ficasse desocupado todo esse espaço. Nós é que estávamos viajando pelo lugar fora da época normal. Neste tempo de chuvas, inverno na região, apenas paulistas desavisados como nós tentariam andar por lá. Jantamos o típico: arroz, abóbora e carne de panela, feitos por outra senhora simpática, mas de poucas palavras, não sei se por desconfiança ou costume.

Não acordamos muito cedo naquela manhã. Não havia muita coisa para fazer a não ser tomar café com biscoitos no horário previsto. O alojamento serve às pessoas que visitam Dom Pedro ou vêm ao lugar para pesquisar sobre os índios ou sobre os conflitos sociais que assolam uma região de fronteira agrícola naquela parte do Mato Grosso e se instalaram ali, às portas da floreta amazônica; ou antropólogos que vinham estudar remanescentes de tribos indígenas em vias de extinção já aglomeradas, em frente, do outro lado do rio, na reserva indígena criada na ilha do Bananal, também expulsas de seus habitats originais pelo dito ‘progresso’ trazido pelos novos fazendeiros em migração do Paraná; também abrigava missionários, às vezes perdidos em sua busca de si mesmos, que não vinham pregar nada, mas com uma intenção superior de trazer algum alento, remédios, medicina, a todo esse grupo que vive embrenhado em pequenas clareiras da floresta ou em novas aldeias na Ilha do Bananal sem qualquer recurso. Alguns desses diferentes tipos passaram por lá rapidamente durante os 10 dias que permanecemos em São Félix.

Nós estávamos ali por motivos mais vagos. Eu como estudante do primeiro ano de economia queria conhecer tudo isso, olhar para essas coisas procurando, de uma forma ingênua, me envolver com o mundo desses embrenhados na floresta, vivendo do básico e para o básico, mas constantemente ameaçados em sua tênue e frágil hipótese de vida que nada tinha do romantismo de Thoreau. Eu queria conhecer o trabalho de Dom Pedro, passar e olhar para os lugares em que seis anos antes havia ocorrido a mais famosa guerrilha de estudantes sulistas que, como eu, acreditavam na possibilidade de um outro mundo. O fato é que Dom Pedro representava para mim alguém que está metido nessa realidade concreta e por isso deve ser escutado em silêncio. Eu com meus 19 anos de idade não sabia exatamente o que encontraria, mas queria escutar alguém de dentro, alguém que já há muito encara de frente e com a mão na massa as questões sociais e econômicas em que todos nós estamos de uma forma ou de outra metidos.

Nessa manhã nos avisaram que chegaria Dom Pedro do interior, de uma de suas viagens a esses recônditos mais distantes só alcançáveis por estradas de chão de difícil acesso a qualquer veículo. Por isso caminhamos em direção à sua casa pelas ruas enlameadas de São Félix do Araguaia, de sandálias havaianas e com a calça jeans dobrada na barra para evitar que se sujasse toda, desviando das poças de água que se formavam pelas chuvas. Havia chovido como naquela época do ano acontece constantemente, com pequenos períodos de trégua, mas com um céu quase que permanentemente nublado. Ao contrário do que se poderia imaginar, não estava quente devido à barreira de nuvens grossas que impediam que o sol abrasante amazônico nos torrasse.

A casa de Dom Pedro era simples, de frente para a rua e estava com as janelas e portas abertas desta vez, demonstrando que ele estava em casa. Sua casa em nada se diferenciava das vizinhas inclusive na cor amarela e nas portas de janelas de madeira simples sem qualquer trabalho, com fechamento de tramela. Era uma casinha de três cômodos com uma mesa de madeira rústica no centro da sala. De lá se podia ver à esquerda o quarto de Dom Pedro com uma rede pendurada por sobre a cama. À frente com o olhar atravessando a porta diretamente ligada à sala estava a cozinha com um tradicional fogão à lenha de cimento vermelho. A senhora já lhe havia anunciado que estávamos ali em sua procura. Fomos convidados a nos sentar à mesa à espera de Dom Pedro. Alguns minutos no silêncio dos zumbidos das moscas adentra à sala aquele senhor de estatura média, extremamente magro de cabelos lisos brilhantes de tão brancos, óculos quadrados de aro dourado, revelando talvez algo em torno dos 50 anos, muito ativo e simpático.

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