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A Grécia está jogando os refugiados ao mar — e a Europa finge que não vê

Relatórios revelaram como as autoridades gregas lançaram pelo menos 1.072 migrantes ao mar, abandonado-os à própria sorte em jangadas e botes caindo aos pedaços. Esta política assassina é uma violação grosseira do direito internacional — diante de um clima cada vez mais xenófobo, os governos europeus permaneceram calados.

Por Rosa Vasilaki / Tradução Giuliana Almada

Em 14 de agosto, o New York Times publicou um relatório documentando as medidas ilegais tomadas pelo governo grego para afastar refugiados e migrantes de suas fronteiras. Com base em entrevistas em primeira mão com sobreviventes, três observadores independentes, dois pesquisadores acadêmicos e a guarda costeira turca, o artigo afirma que pelo menos 1.072 requerentes de asilo foram jogados de volta para a água, abandonados à própria sorte. Em pelo menos trinta e uma expulsões diferentes, os migrantes foram forçados a irem mar a dentro em jangadas salva-vidas furadas ou deixados à deriva em seus barcos, depois de as autoridades gregas terem desativado os motores.

Essas medidas são ilegais sob o direito internacional. Além do perigo imediato que representam para a vida humana, elas contradizem o princípio de “não repulsão”, que proíbe esses rechaços. Antes mesmo de sua vitória eleitoral em julho de 2019, o partido de direita Nova Democracia já havia prometido uma abordagem “dura” em relação aos migrantes. Porém, diante da cobertura jornalística das recentes expulsões, o governo grego tentou negar qualquer acusação de ilegalidade.

Primeiro foi o ministro de migração e asilo Notis Mitarakis; ele emitiu uma nota declarando que “a Grécia implementa uma política de migração dura, mas justa e que respeita plenamente suas obrigações sob o direito internacional”. Mitarakis questionou a credibilidade da guarda costeira turca como fonte para tais reivindicações, acrescentando que “entrevistas publicadas por refugiados residentes na Turquia não tem evidência de que estejam em risco naquele país, sendo assim, essas pessoas podem muito bem solicitar o status de refugiado por lá”. Nessa mesma linha, falando à CNN em 22 de agosto, o primeiro-ministro Kyriakos Mitsotakis retratou a Grécia como vítima de uma campanha de desinformação — que seria parte dos esforços turcos para “usar a questão da migração para nos atacar”.

Na realidade, as alegações das intercepções e expulsões de migrantes por oficiais gregos são todas muito precisas — e elas têm acontecido há anos. Mas desde os incidentes do último mês de março — quando a Turquia declarou que abriria sua fronteira terrestre com a Grécia e milhares de pessoas ficaram ilhadas entre os dois países — tais práticas ilegais têm se tornado sistemáticas em todas as fronteiras terrestres e marítimas da Grécia. O próprio fato dessas medidas serem possíveis, e na verdade toleradas por outros Estados-membros da União Europeia, é também uma grave ilustração de como a hostilidade aos migrantes foi normalizada, tanto na Grécia quanto no resto do continente.

Rechaço

No direito internacional, o princípio de “não repulsão” garante que ninguém seja devolvido a um país onde enfrentaria tortura, tratamento ou punição cruel, desumana ou degradante, ou outros danos irreparáveis. Tal princípio é vinculativo para todos países signatários da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, do Protocolo Relativo ao Estatuto dos Refugiados de 1967, ou da Convenção Contra a Tortura de 1984 — tratados que inclui a Grécia. A “não repulsão” vigora de forma decisiva para todos os migrantes em todos os momentos, independentemente da situação migratória em que se encontrem.

As ações do governo grego estão rompendo com este princípio — e suscitando a condenação da comunidade internacional. Em 10 de março, o New York Times já havia advertido sobre a postura de endurecimento adotada por Atenas. O jornal revelou que o governo grego está detendo os migrantes em um local extrajudicial e secreto antes de expulsá-los para a Turquia, sem seguir o procedimento adequado. Diversos migrantes foram entrevistados: todos eles relataram ter sido capturados, privados dos seus pertences, agredidos e expulsos da Grécia, enquanto seu direito de pedir asilo ou falar com um advogado foi completamente negado. 

Em 12 de junho, o ACNUR pediu que Grécia investigasse os rechaços nas fronteiras marítimas e terrestres com a Turquia, assim como a suspeita de devolução de migrantes e requerentes de asilo à Turquia após os mesmos já terem entrado no território ou nas águas territoriais gregas. O ACNUR repetiu o mesmo pedido em 21 de agosto, enfatizando o aumento das alegações de fontes confiáveis que relatam que homens, mulheres e crianças estão sendo expulsos para a Turquia sem acesso a processos relacionados à obtenção de asilo após chegarem na Grécia.

Em 16 de junho, uma investigação da revista alemã Der Spiegel revelou que a guarda costeira grega está interceptando barcos de refugiados, colocando os migrantes em botes salva-vidas, os arrastando em direção à Turquia e os abandonando em alto mar. A investigação relata que homens mascarados, certamente oficiais de controle da fronteira grega, atacam rotineiramente barcos de refugiados no Mar Egeu Oriental, que muitas vezes são rebocados de volta à superfície pela guarda costeira turca. Ainda mais mais perturbador do que as autoridades gregas estarem em clara violação de suas obrigações internacionais com relação aos direitos humanos, de acordo com a investigação da Der Spiegel, é o fato de que estarem utilizando equipamentos destinados a salvar vidas para colocar a dos migrantes em risco.

Metas de deportação

Estes não são apenas incidentes isolados nas fronteiras. Pelo contrário, eles são parte de uma estratégia mais ampla que tira proveito do clima político xenófobo desenfreado na Grécia. Foi esta mesma atmosfera que culminou em ataques violentos aos refugiados nas ilhas gregas e na fronteira greco-turca em Evros, em março deste ano. E a construção, no início de julho, de uma barreira flutuante — essencialmente uma fronteira artificial, com quase 2.700 metros de comprimento e mais de um metro de altura — a nordeste da ilha de Lesbos se enquadra na mesma lógica de intimidação. Pouca consideração é dada ao sofrimento humano, ou mesmo à própria vida.

Esta mesma lógica foi evidenciada durante a crise da COVID-19, uma vez que o governo grego se recusou a evacuar ou mesmo descongestionar os campos de refugiados superlotados. Apesar dos incontáveis apelos de organizações internacionais, grupos de direitos humanos, especialistas médicos e ativistas, da comissão de liberdades civis, justiça e assuntos internos do Parlamento Europeu e da Organização Internacional para as Migrações (OIM), Atenas se recusou a ceder à pressão. Ao invés disso, o governo se gabou dos protestos de requerentes de asilo cujos pedidos foram rejeitados — tratando essas reclamações como um sucesso. Por assim fazer, mandou uma mensagem ao seu eleitorado: as “metas de deportação” estão sendo atingidas e as promessas anti-imigração estão sendo cumpridas.

As “políticas de integração” também foram endurecidas, num esforço cruel para mostrar aos potenciais requerentes de asilo que sua vida na Grécia se tornaria impossível, mesmo que os seus pedidos fossem reconhecidos. A nova lei de asilo grega reduziu o tempo de permanência dos refugiados reconhecidos em campos ou alojamentos gerenciados pela ONU de seis para apenas apenas um mês, após terem garantido proteção estatal. Os auxílios emergenciais também são suspensos após um mês, uma vez que os refugiados têm nominalmente o direito de solicitar o seguro social grego — o que lhes permite, pelo menos em teoria, encontrar trabalho. Na prática, exigências burocráticas absurdas e requisitos contraditórios impostos aos refugiados são projetadas para que seja praticamente impossível que eles consigam alojamento ou trabalho.

Esta abordagem punitiva foi ainda mais bem ilustrada pelas ações do prefeito de Atenas — sobrinho do primeiro-ministro, também filiado ao partido governante Nova Democracia. Ele retirou os bancos da Praça Victoria em uma tentativa de impedir os refugiados de vagarem por lá. A praça pública havia servido como um ponto focal de solidariedade para os refugiados durante a crise de 2015-2016 e era um lugar reconhecido onde os refugiados passaram a recorrer mais uma vez na esperança de encontrar um abrigo temporário após serem expulsos dos campos de refugiados.

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