Os Yanomami contra o coronavírus (e contra a diarreia, as lombrigas e os garimpeiros…) Missão médica das Forças Armadas vai às aldeias em Roraima cercada de controvérsia e sob pressão para prestar atendimento sem desrespeitar cultura da etnia
Naiara Galarraga / Joédson Alves (Foto)
os Yanomami do Brasil só dão nome a um filho depois que este é capaz de se virar por conta própria. Até então, é conhecido como filho de… E só quando o filho é autônomo é que pensam em ter outro. O segredo desses indígenas de Amazônia para espaçar a prole são plantas anticoncepcionais obtidas na maior floresta tropical do mundo. Eles fazem isso há séculos. O contato com os brancos quebrou o equilíbrio de muitos outros aspectos de suas vidas e, além disso, trouxe doenças desconhecidas cujo caso mais recente é a covid-19, causada pelo novo coronavírus.
A praga, que se espalha rapidamente pelo interior do Brasil, ameaça os cantos mais remotos da Amazônia, que, vista de cima, é um denso tapete verde cortado por imensos rios de água marrom avermelhada. Centeno Batista, de 32 anos, está com sua mãe e outros parentes na fila para fazer um teste de covid-19 em sua aldeia, Waikás, localizada em território Yanomami. Batista espera sentado debaixo de um toldo enquanto enfermeiros militares, trazidos em um helicóptero Black Hawk, coletam uma gota de sangue para o teste. O resultado sai em alguns minutos. Negativo.
Segundo essa análise, de confiabilidade limitada, Waikás está livre do contágio. Um alívio para Batista, cuja vida também foi transtornada pelo vírus que revolucionou o planeta. Por enquanto, ele não pensa em voltar a Boa Vista, capital de Roraima. Fica a uma hora e meia de voo ou duas semanas de navegação. “Tenho muito medo de ir à cidade, porque lá posso me contagiar e poderia morrer”, explica esse indígena no espanhol que aprendeu quando criança do outro lado da fronteira, na Venezuela. Foi na cidade que ele soube há dois meses, ao ver as notícias, que uma nova doença dos brancos estava matando milhares de pessoas no Brasil e até na China.
Fazer testes rápidos de coronavírus na população de três aldeias Yanomami —são 300 no total— é parte de uma operação lançada na semana passada pelas Forças Armadas brasileiras com vários objetivos: comprovar se a epidemia chegou até lá, reforçar o atendimento médico com a transferência de profissionais de saúde para fazer consultas durante algumas horas, entregar alimentos e melhorar a imagem dos militares tanto dentro quanto fora do Brasil. Saber qual é a prioridade depende de se a pergunta é feita aos defensores dos indígenas ou ao Governo, que mobilizou 34.000 soldados contra a epidemia e outros 3.000 contra o desmatamento.
A viagem, organizado pelo Ministério de Defesa e da qual participaram vários veículos de comunicação, incluindo o EL PAÍS, causou polêmica. Como exemplo de que a defesa da cultura milenar não é inimiga da tecnologia, Roberto e Paraná Yanomami acusam as autoridades, em um vídeo divulgado no Twitter, de não tê-los consultado sobre a visita, e afirmam que “os desconhecidos trouxeram a covid”. “Não queremos ser propaganda do Governo”, diz o segundo. O porta-voz do Ministério de Defesa, almirante Carlos Chagas, enfatiza que para poder participar da viagem era preciso dar negativo em um teste de coronavírus. (No caso dos jornalistas, foi exigido um PCR, que detecta a presença viral). Em Governos anteriores, as exigências de exames médicos eram muito maiores.
Todos os Yanomami têm o sobrenome de seu povo. E como nome escolhem uma palavra de que gostem, ou uma sigla. DC3 Yanomami —como o avião de carga— é um dos que acreditam que o coronavírus “ficou em Boa Vista”. Diz isso na base de Surucucu, perto de sua aldeia, enquanto alguns adolescentes jogam voleibol e outros se divertem pulando em uma cama elástica. Chega depois a hora da troca. Os Yanomami trocam lanças por sabonetes com os militares e alguns jornalistas. Terminadas as consultas, os médicos recolhem seu equipamento enquanto é anunciada a distribuição de cestas básicas —com alimentos tão alheios à dieta desses indígenas como arroz, feijão e batata-frita. A aglomeração formada é mais do que notável, para espanto dos profissionais de saúde que atendem no ambulatório da aldeia.
O presidente Jair Bolsonaro nunca ocultou que sua prioridade na Amazônia é explorar o tesouro mineral e madeireiro das entranhas da floresta, além de defender a soberania brasileira sobre o território. Mas o Governo sabe que as questões indígena e ambiental são muito mais relevantes nas relações diplomáticas brasileiras do que ele gostaria. Por isso, multiplica os gestos agora que começa a época de incêndios —que, em agosto do ano passado, indignou o mundo. A linguagem delata alguns altos comandantes militares quando se referem aos indígenas reiteradamente como primitivos.
Saiba mais em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-12/os-yanomami-contra-o-coronavirus-e-contra-a-diarreia-as-lombrigas-e-os-garimpeiros.html
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