A crise do COVID-19 desencadeou uma nova rodada de reflexão na imprensa sobre as desigualdades urbanas. Se não focarmos nas raízes desses problemas, que estão na estrutura do nosso sistema econômico, nunca conseguiremos resolvê-los.
Por David Harvey / Tradução Marianna Braghini
A crise da COVID-19 desencadeou uma nova rodada de reflexão sobre os problemas urbanos. Se não abordarmos a causa na raiz desses problemas, que está na estrutura de nosso sistema econômico, nunca conseguiremos resolvê-los.
É bem possível que, se e quando emergirmos coletivamente das tormentas provocadas pela COVID-19, estaremos em um cenário político onde a reforma do capitalismo estará na agenda. Mesmo antes do vírus surgir, já havia pequenas sugestões de uma transição. Grandes líderes empresariais que se encontraram em Davos, por exemplo, ouviram que sua obsessão por lucros, valor de mercado e negligência com os impactos sociais e ambientais estava se tornando contra-produtiva. Eles foram aconselhados a se esconder da fúria pública sob alguma forma de “consciência” ou “eco-capitalismo.”
O estado lamentável da saúde pública e sua capacidade de defesa contra as investidas do vírus, após quarenta anos de políticas neoliberais em diversas partes do mundo, aumentou o nível de indignação pública. Austeridade em tudo menos nas despesas militares ou subsídios aos supostamente necessitados — apesar de ridiculamente ricos — corporações deixaram para trás um gosto amargo, em especial após o resgate dos bancos em 2008. Em contraste, as medidas coletivas e estatais dos governos em meio a pandemia pareceram funcionar e geraram posicionamentos públicos mais favoráveis para alguns governos.
Em suas notáveis conferências diárias no noticiário, o Governador de Nova York, Andrew Cuomo, insiste que a eventual saída da crise atual requer mais do que reimaginar cenários econômicos, sociais e políticos, dependerá também do que ele vê como uma peculiar reconciliação entre a expressão da vontade popular e os poderes governamentais. Para aqueles de nós que viveram o recente pesadelo em Nova York, esta declaração de confiança no valor da intervenção estatal faz algum sentido.
Infelizmente, os movimentos preparatórios de Cuomo para seu exercício de reimaginação, até então, envolveram o recrutamento do clube de bilionários de Michael Bloomberg (para organizar a testagem), de Bill Gates (para coordenar iniciativas em educação) e o ex-CEO da Google, Eric Schmidt (para calibrar comunicações e funções governamentais). O levante democrático que se tornou mais proeminente nas ruas ainda está para deixar sua marca no poder político. Na perspectiva de Cuomo, as reimaginações e reconstruções necessárias, serão customizadas de acordo com as necessidades do capital e das pessoas, conforme definido por uma elite capitalista progressista.
As cidades que precisamos
Na longa história da governança burguesa, houve fases notáveis de reforma radical nos EUA, como a era progressista na virada do século XX, o New Deal nos anos 1930 e a Grande Sociedade dos anos 1960. Aparentemente, o consenso é construir o que está em atraso.
É em tal contexto que um fio de vapor está se desenvolvendo para reconstruir a vida urbana em particular e revitalizar processos urbanos de forma a promover não só formas mais racionais — e ecológicas — de desenvolvimento econômico, como também meios mais adequados de organização da vida cotidiana. Além de causar danos diretos na qualidade da vida cotidiana dos nova iorquinos, o vírus também revelou o nível de podridão por baixo da superfície alegre do consumismo conspícuo, do individualismo indulgente e intervenções arquitetônicas extravagantes.
É neste espírito que um recente editorial do New York Times, com reflexões sobre “As cidades que precisamos” — complementadas por diversos convidados experts em artigos de opinião — demanda alguns comentários. O tema central é simples. Era uma vez, onde “as cidades funcionavam. Agora não funcionam mais”. Precisamos fazê-las funcionarem novamente.
Por trás disso reside uma certa reconstrução nostálgica de uma era em que “as cidades nos EUA eram o motor do progresso econômico da nação, a vitrine de sua riqueza e cultura, os objetos de fascínio, admiração e aspiração global”. Nos bons velhos tempos, “cidades forneciam a chave para desvendar o potencial humano; uma infraestrutura de escolas públicas e faculdades, bibliotecas e parques públicos, sistema de transporte público, água limpa e segura para beber”, ainda que fossem “deformadas por racismo, sangradas pelo lucro das elites e sujas por poluição e doenças.” Mas acima de tudo, as cidades “ofereciam oportunidade.”
O problema agora — e que o vírus revelou com brutal detalhamento – é que “nossas áreas urbanas estão atadas por fronteiras e muros invisíveis, mas cada vez mais impermeáveis, separando enclaves de riqueza e privilégios, das lacunas nos bairros de prédios envelhecidos e lotes desocupados, onde os empregos são escassos e a vida é dura, além de geralmente curta”. O nível de expectativa de vida nos bairros mais pobres é de apenas 60 anos, em comparação com os subúrbios abastados, em que a expectativa é de 90 anos. Para enfatizar esta questão, o New York Times publicou posteriormente mapas apresentando as diferentes expectativas de vida nas cidades dos EUA.
Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2020/07/a-pandemia-expos-os-muros-invisiveis-erguidos-pelo-capitalismo-nas-grandes-metropoles/
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