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A próxima crise vai começar pelo Sul

Abafada pela mídia, arma-se uma tempestade financeira global com epicentro na periferia — e bem mais caótica que as dos anos 1980. Qual sua relação com a pandemia e as desigualdades. Por que exige saídas que o sistema tenta proibir

Por Karina Patricio Ferreira Lima | Tradução de Simone Paz

Contrariando o senso comum que existe sobre fundamentos fiscais, a atual crise da dívida na periferia global demonstra que a solvência dos Estados soberanos é determinada por seu poder monetário. De forma crucial, a liquidez tem um caráter cíclico na periferia do capitalismo global e um caráter anticíclico no centro.

Quando a economia cresce e os contratos parecem seguros, os aplicadores internacionais são mais proponsos a investir em economias periféricas — e que, normalmente, remuneram com taxas de juros mais altas. Mas, em épocas de estagnação, as percepções de segurança de ativos podem mudar rapidamente. Estados de moeda periférica são, portanto, vulneráveis a retiradas rápidas de contratos denominados em sua moeda. Percebendo o risco, os investidores privados buscam os ativos mais seguros da economia global, que, apesar das taxas de juros mais baixas, garantem baixos riscos de crédito e de mercado, alta liquidez de mercado, e uma inflação, taxa de câmbio e riscos idiossincráticos limitados.

A esmagadora maioria de ativos seguros é denominada na principal moeda do mundo, o dólar americano, e em outras moedas centrais do sistema monetário internacional. Mais da metade deles é composta por dívida pública emitida por esses Estados centrais, garantida por seus governos ou bancos centrais. Os Estados de moeda periférica não se beneficiam dessa estabilidade. Os Estados menos poderosos — monetariamente — são, portanto, mais vulneráveis às altas e baixas de modedas, causadas por flutuações na liquidez internacional, que provocam riscos de iliquidez estrutural e, portanto, crises de insolvência dos Estados

A solvência na pandemia global

A covid-19 desencadeou o que o Fundo Monetário Internacional chamou de “a pior desaceleração econômica desde a Grande Depressão”. Os países no centro do capitalismo global lançaram um conjunto de estímulos monetários e fiscais nunca antes visto, permitindo-lhes manter suas economias à tona a taxas de juros muito baixas. Em contraposição, a periferia sofreu grandes choques econômicos e financeiros, o que fez com que muitos países tivessem que lutar para conseguir pagar as importações, pagar o serviço de suas dívidas externas e financiar programas emergenciais de saúde, segurança alimentar e recuperação econômica.

Desde janeiro até abril deste ano, o capital privado parou de fluir para as economias em desenvolvimento e emergentes (EDEs). Enquanto isso, as saídas de recursos alcançaram 96 bilhões de dólares, os níveis mais altos da história, à medida em que os investidores estrangeiros procuravam livrar-se do risco retirando seu dinheiro desses mercados. Ao mesmo tempo, a eclosão da pandemia levou a uma queda no comércio global, no investimento estrangeiro direto, nos preços das commodities e no turismo. A queda acentuada, que se espera para este ano, nas receitas de exportação significa que uma parte crescente das receitas na periferia global será gasta no serviço da dívida denominada em moeda das economias centrais.

De acordo com a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, as necessidades de financiamento das EDEs (excluindo a China) chegarão a 2,5 trilhões de dólares este ano e podem chegar a 3 trilhões de dólares nos próximos dois anos. Mesmo que o financiamento oficial permaneça constante, o déficit esperado do setor público nesses países, incluindo dívidas de longo e curto prazo, deve chegar a 735 bilhões de dólares. Embora uma pequena parte dessas necessidades de financiamento tenha sido coberta pelo banco central dos EUA [Federal Reserve] — por meio da extensão de linhas de swap para bancos centrais de mercados emergentes, como Brasil, México e Coreia do Sul — esses arranjos excluíram a grande maioria das EDEs, que ficam desprotegidas em meio a uma dramática corrida para a liquidez em dólares americanos. Isso demonstra a hierarquia global do dinheiro, na qual o núcleo — e, às vezes, um seleto grupo da periferia — do sistema é capaz de acessar barreiras de liquidez não condicionais (e, no caso de Estados centrais, ilimitadas), enquanto a liquidez de emergência para a periferia geralmente assume a forma de empréstimos condicionais do FMI ou de doações de assistência oficial ao desenvolvimento (ODA).

A situação atual da periferia global pode ser descrita como uma crise de liquidez sistêmica que, rapidamente, está se transformando em uma crise de solvência. Neste contexto, as opções de política são limitadas. Os países podem fazer um sacrifício suplementar, desviando recursos para o serviço da dívida, apesar de suas economias exigirem maiores gastos fiscais para lidar com a emergência de saúde e a queda econômica. Alternativamente, aqueles que mantêm o seu acesso ao mercado podem perder o controle no caminho, ao recorrerem a empréstimos adicionais. Isso pode parecer mais fácil devido às taxas de juros próximas de zero nas economias desenvolvidas (que estão levando alguns investidores a acumular ativos de risco na periferia em busca de rendimento); porém, mais cedo ou mais tarde isso pode resultar em uma crise de dívida ainda mais severa. Em último caso, os Estados podem recorrer ao credor de última instância da periferia global: o FMI. Não é surpresa, portanto, que 100 dos 189 membros do Fundo, metade dos quais são países de baixa renda, já o tenham procurado para obter auxílio de liquidez de emergência. Previsivelmente, dezenas deles estão em risco ou já anunciaram inadimplências e reestruturações soberanas. Nos próximos meses, é provável que mais países enfrentem dificuldades financeiras.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/aproxima-crise-vai-comecar-pelo-sul/

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