É um erro pensar que o movimento agroecológico limita-se a produzir orgânicos, em “um nicho diferenciado”. Seu foco é reorientar a agricultura segundo lógicas que se oponham e subvertam as do mercado capitalista
Por Paulo Petersen e Denis Monteiro
Em tempos de pandemia, cabe uma discussão específica relacionada aos impactos sobre a saúde pública resultantes do controle exercido pelas megacorporações sobre os sistemas alimentares. Segundo uma comissão científica organizada pela prestigiosa revista médica The Lancet, a globalização uniformizante dos padrões de produção e consumo alimentar é responsável pela criação e a interação sinérgica de três fenômenos agravantes de problemas de saúde em todo o mundo: a obesidade, a desnutrição e as mudanças climáticas. Como os três possuem causas e efeitos em comum e alimentam-se reciprocamente, a comissão identificou o processo como um fenômeno singular, que designou de sindemia global.
A responsabilidade da sindemia, segundo a comissão, é inequívoca: de um lado, a produção agropecuária realizada em grandes escalas, baseada no uso intensivo de fatores artificiais, tais como agroquímicos, hormônios e antibióticos; de outro, o consumo de alimentos ultraprocessados; para sustentar energeticamente essa cadeia de irracionalidade ecológica e sanitária, o uso intensivo de combustíveis fósseis.
Embora a agricultura industrial e o consumo de comida-porcaria sejam praticadas há várias décadas, principalmente após a Segunda Guerra, não resta dúvida que a acelerada expansão e a crescente interdependência entre ambos os processos ocorreu sob a égide do neoliberalismo, particularmente após a assinatura do Acordo Agrícola da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1995. Segundo definição proposta pelo sociólogo holandês Jan Douwe van der Ploeg, verdadeiros “impérios alimentares” formaram-se desde então, alterando profundamente a economia política dos sistemas alimentares ao sujeitar o mundo social e o mundo natural a novas formas de controle centralizado e de apropriação massiva. Para o autor, assistimos “uma conquista imperial no que diz respeito à integridade dos alimentos, à perícia da prática agrícola, à dinâmica da natureza e aos recursos e aspirações de muitos agricultores”. Contrastando com suas fachadas de empreendedorismo de última geração, os impérios não produzem nenhuma riqueza. Tal como os antigos impérios coloniais, apenas se apropriam dos recursos antes controlados de forma relativamente soberana pelas nações e comunidades locais, deixando em troca pesados passivos sociais e ambientais.
É diante desse contexto histórico, que a agricultura familiar camponesa, em toda a sua diversidade cultural e identitária, irrompe como força sociocultural e política portadora de promessas de futuro na reconstrução de sistemas alimentares saudáveis, economicamente dinâmicos, tecnicamente eficientes e ecologicamente sustentáveis. Sobram evidências históricas de que a lógica de organização social e econômica da agricultura familiar possibilita o desenvolvimento combinado dessas dimensões, exatamente porque imprime em seus arranjos técnicos e econômicos um conjunto de princípios comuns às dinâmicas de funcionamento da natureza: a diversidade; a flexibilidade adaptativa; a natureza cíclica dos processos; a interdependência; e os vínculos associativos e de cooperação.
Não obstante, esse potencial inscrito nas memórias bioculturais da agricultura familiar e bem disseminado em todo o planeta vem sendo largamente desperdiçado por políticas públicas e marcos regulatórios desenhados para favorecer a dinâmica expansiva da agricultura capitalista (patronal) e, de forma mais abrangente, dos impérios alimentares. No lugar de diversidade, assiste-se o avanço da especialização produtiva, característica das economias de escala adotadas na produção industrial; processos econômicos cíclicos em escala local dão lugar a cadeias globais de commodities; a interdependência entre agentes econômicos é progressivamente substituída pelos grandes conglomerados monopólicos; o princípio da cooperação solidária na economia é suplantado pelo individualismo competitivo nos mercados.
Cabe registrar, no entanto, que o desperdício desse potencial sociocultural latente é ainda mais gritante e paradoxal quando políticas públicas específicas para a agricultura familiar, em geral resultantes de duras conquistas de movimentos sociais do campo, induzem as famílias agricultoras a ingressarem em trajetórias de inovação técnica e produtiva que comprometem sua autonomia econômica e esgarçam seus vínculos de pertencimento às redes de solidariedade comunitária.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/agroecologia-ou-colapso-2/
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