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Álvaro Linera: Bolívia voltará à trilha do pós-capitalismo

Ex-vice-presidente, exilado em Buenos Aires, prepara volta a seu país. Ele ressalta: Estado não cosntrói a nova sociedade — apenas cria condições para que populações livrem-se da tirania do capital e do colonialismo. É isso que a direita não tolera

Álvaro García Linera está exultante. Não só por uma vitória eleitoral cuja magnitude não era esperada, mas porque, morando em Buenos Aires, comemorou o fato de o calor opressivo ter dado uma trégua de alguns dias, permitindo uma queda de temperatura que prevaleceu nesta última semana. Sinais inconfundíveis de um retorno iminente às terras altas, após onze meses de exílio e incertezas. No entanto, apesar de sua fé cega no desenrolar da história, o ex-vice-presidente da Bolívia sabe que nada será igual.

O encontro aconteceu nesta terça-feira, 20 de outubro, na casa que a editora Siglo XXI possui em Palermo, mais precisamente em seu terraço. O intelectual nascido em Cochabamba pediu o adiamento da entrevista por uma hora, porque teria que cuidar da filha um pouco mais do que o esperado. As razões do triunfo do MAS (Movimento Ao Socialismo), as lições do perigo vivido, os desafios para o próximo governo e os grandes dilemas da esquerda no cenário em que vivemos são alguns dos temas abordados nesta entrevista, que culminou justamente quando começou a cair a noite.

Qual é o significado histórico deste evento? Você ficou surpreso com o que aconteceu?

Fiquei surpreso com o volume do triunfo. Sabíamos que iríamos vencer, mas não calculamos a dimensão da vitória. Quando começaram a chegar os primeiros dados sobre a nossa vantagem sobre o segundo colocado, fiquei animado e muito feliz. O significado, para a Bolívia, é que o projeto nacional popular que o MAS construiu continua sendo o horizonte intransponível desta época. No ano passado, esse projeto não foi derrotado, foi paralisado. Você derrota algo quando tira sua força moral ou sua energia. E isso não aconteceu. Eles (o governo golpista) foram impostos, graças a problemas óbvios e uma votação nossa que não foi tão alta como agora. Mas a prova é o que desta vez isso está acontecendo. O projeto que tentaram paralisar e cortar à força no ano passado renasceu com um vigor impressionante, porque sua energia ainda não se exauriu, não terminou. Nesse sentido, o projeto do MAS de inclusão social, crescimento econômico e distribuição de riqueza continua sendo o horizonte desta nova década que se avizinha. E para o continente, acho que a lição é que se você aposta em processos que beneficiam fundamentalmente as pessoas mais simples, mais necessitadas, mais trabalhadoras, você não está falhando. Você pode ter problemas, pode ter dificuldades, contratempos, essas voltas e reviravoltas que ocorrem, mas é uma aposta que vai com o sentido da história. Diferente daqueles projetos que apostam em se colocar ao lado da empresa, dos ricos, dos privilegiados, e que pretendem, a partir daí, puxar o resto da sociedade. Esse projeto está esgotado, cada vez mais endurecido, autoritário. Por outro lado, se na hora de tomar posição, você aposta nos trabalhadores, se você se agarra em continuar apostando na emancipação, na luta, no bem-estar, na melhoria das classes trabalhadoras, pode ceder temporariamente, mas a história continuará caminhando do seu lado. E isso é bom neste momento em que o mundo inteiro está em uma espécie de estupor planetário, em que os líderes políticos e sociais, a intelectualidade, não sabem para onde o mundo está indo.

Durante essas horas, ouvi três interpretações sobre por que a vitória do MAS foi tão ampla e um tanto surpreendente. A primeira diz que a maioria da população votou pela volta aos 13 anos do governo anterior, que, segundo essa ideia, ainda são o horizonte intransponível da época. Um segundo argumento defende que o governo (Jeanine) Áñez foi tão ruim que o povo votou contra ele, e, assim, beneficiou o MAS. E uma terceira reflexão coloca a ênfase na fórmula de Arce-Choquehuanca, que teria proporcionado o fluxo eleitoral que a fórmula com você e com Evo não podia conquistar mais. O que você acha?

plesmente agarrar o velho e endurecê-lo. Acrescentam um pouco mais de autoritarismo, um pouco mais de racismo, uma dose de ódio, uma dose de rancor, outra de violência… Isso não é um projeto, não é algo que possa servir por um tempo e tampouco para gerar uma convicção duradoura do horizonte às pessoas. Em parte, a política é como você direciona o horizonte de previsão das pessoas. É uma luta pelo monopólio do horizonte preditivo da sociedade. E eles o perderam. Eles tentam revivê-lo com choques elétricos de ódio, ressentimento, racismo, e acabam obtendo um Frankenstein. Você não consegue um projeto orgânico de sociedade dessa forma. Sinto que é um momento ruim para as forças conservadoras a nível mundial. Eles podem continuar a governar, e estão governando a maior parte dos países, mas é um momento ruim. Uma nova peça dessa capacidade de direcionar o horizonte da sociedade está caindo do tabuleiro deles todos os dias. O horizonte preditivo é quando você acorda, sabe o que vai fazer. E o que seu filho vai fazer, sua esposa e seu irmão, o que você pensou sobre o dia seguinte, ou o próximo mês, ou os próximos seis meses. É algo concreto, não uma abstração filosófica: como as pessoas preveem seu destino imediato. Quando você não consegue fazer isso, como está acontecendo agora com as forças conservadoras, esse processo caótico ocorre. O progressismo é uma resposta ao esgotamento do horizonte preditivo do neoliberalismo. É uma aposta que avança, tem problemas, se debilita e depois se ergue novo. Veja o que aconteceu com a Bolívia. A retomada do comando pelas forças neoliberais nos últimos anos é temporária, é uma retomada de pernas curtas. Você por me dizer: “mas e o que aconteceu com o Bolsonaro?”. E claro, também é um projeto neoliberal, e também é um Frankenstein, com doses de racismo, sexismo e violência. Eles também podem vencer eleições, mas não têm controle do horizonte preditivo. Eles tinham, nos Anos 80, aquele discurso que propagaram pelo mundo, de que “já não há mais opções”. Foi a frase de (Margaret) Tatcher, “o que resta é só isso”, o neoliberalismo, a única opção. O que o senhor (Francis) Fukuyama escreveu mais tarde, com linguagem filosófica, sobre o suposto “ fim da história”. Isso eles não podem dizer agora, eles não ousam dizer. O próprio Fukuyama se retratou. Ninguém sabe o que vai acontecer no mundo.

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