“A chapa Luis Arce Catacora e David Choquehuanca é um binômio histórico que representa a recuperação política, democrática, social e econômica”
Por Leonardo Wexell Severo
“A chapa Luis Arce Catacora e David Choquehuanca é um binômio histórico que representa a recuperação política, democrática, social e econômica”, afirmou o cientista social José Luiz Mendez Chaurara (Lucho), ex-cônsul boliviano no Brasil (2008-2013), ex-secretário de Estado de Pando e dirigente popular, em entrevista exclusiva. “O fato é que o povo boliviano já não suporta mais tanta corrupção, desemprego e fome”, assinalou Chaurara, denunciando que “a convivência com a corrupção total, absoluta e permanente nas empresas de petróleo, nos ministérios de Comunicação e de Saúde, em todas as instâncias de governo, passou a ser algo normal” na atual administração de Jeanine Áñez. Condenando os ataques à bomba feitos recentemente às sedes da Central Operária Boliviana (COB) e da Confederação Nacional de Mulheres Camponesas Indígenas Originárias da Bolívia Bartolina Sisa, o pesquisador sublinhou que “é inaceitável a escalada de atentados e ações contra as entidades populares”, defendendo que “é preciso pacificar o país”. “Os movimentos sociais consideram que estes são atentados fascistas que não respeitam a democracia e foram cometidos pelos que se veem perdidos frente à recuperação paulatina dos direitos”, frisou.
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Pediria uma breve síntese do processo de independência até a vitória do Movimento Ao Socialismo (MAS).
Desde 1825, quando obtivemos a primeira independência do que chamamos a República de Bolívia, nosso país veio se desenvolvendo com muita dependência econômica e política, como é característica do modelo capitalista e, mais ainda do neoliberal. Não havia soberania, o endividamento externo era muito grande, o analfabetismo era alto e crescente, da mesma forma que a pobreza e a extrema pobreza.
Um processo que foi encerrado com a revolução de 1952, quando de alguma forma o campesinato começou a se organizar e a reivindicar seus direitos. A partir de então se dá a estruturação de um modelo econômico estatal com nacionalização das minas, com voto universal, mas com uma sequência de golpes, chegando até 1979-1980 com a esquerda via Unidade Democrática e Popular (UDP), com candidatos sociais-democratas, tentando chegar ao poder. Se aprofunda uma hiperinflação, um modelo de desenvolvimento que não permitiu satisfazer as grandes maiorias e chegamos em 1985.
A direita retorna à condução do país com a implantação do modelo neoliberal. Aí sim, de verdade, o neoliberalismo retoma forte com a privatização de todas as estatais estratégicas, seja a empresa de petróleo, a Yacimientos Petroliferos Fiscales (YPF), a Lloyd Aéreo Boliviano – hoje desaparecido -, os transportes ferroviários, a mineração, as telecomunicações. Então absolutamente tudo que fosse estratégico e permitisse ao Estado sustentar de alguma maneira a economia foi privatizado. Todo esse processo acaba por gerar um enorme descontentamento na população, que começa a se manifestar.
Os movimentos sociais iniciam a se organizar e unir no que veio a ser o Instrumento Político pela Soberania dos Povos (IPSP). Porque até então as entidades populares chegavam nas mesas de negociação, mas não à tomada de decisões, como o legislativo e ao executivo. Por isso formam uma grande frente, o Movimento Ao Socialismo (MAS-IPSP), cujo sustento orgânico e político são os movimentos sociais, camponeses, indígenas, trabalhadores das fábricas, classe média – incluindo setores profissionais e progressistas. É assim que em dezembro de 2005 a oposição ganha as eleições no primeiro turno com Evo Morales à cabeça, contando anteriormente com uma boa representação parlamentar.
Com o MAS, Evo assume o governo e adota um programa desenvolvimentista, de ruptura com o neocolonialismo. Como se deu isso?
Entre as principais medidas adotadas imediatamente, a partir de 22 de janeiro de 2006, está a convocatória da Assembleia Constituinte, a elaboração de uma nova Constituição Política do Estado, com participação de todos os setores: camponeses, indígenas, empresários, com todos os estratos sociais.
É assim que se elabora uma nova Carta, um novo texto constitucional. O mesmo é submetido a um referendo. E o povo vota e aprova a nova Constituição, em que se dão importantes mudanças. Primeiro, que a República passa a se denominar Estado Plurinacional da Bolívia, com o reconhecimento das 36 nações e povos indígenas originários, em que a língua oficial deixa de ser exclusivamente o espanhol, e se reconhece as 36 línguas como idiomas. Um grande passo para devolver um direito que sempre deveria ter sido reconhecido.
Outra grande conquista é que se reconhece um percentual de cerca de 4% dos eleitos como representantes destes povos, escolhidos de forma direta, pelas suas normas próprias, de seus usos e costumes. Isso é sagrado e o decidem conforme sua forma de organização, com a garantia de participação parlamentar.
Outro tema importante é que se propõe a recuperação de todas as estatais estratégicas que foram privatizadas, como as empresas de petróleo e a de telecomunicações. Só para dar um exemplo do que isso significa: quando o petróleo estava no subsolo era dos bolivianos, do Estado, porém uma vez que saísse à flor da terra, nos dutos para as refinarias, já era das empresas estrangeiras. Então de nada nos servia. Saindo do subsolo já não era mais propriedade boliviana, 82% dos lucros pertenciam às multinacionais e somente 18% ficavam com o país. Com a nacionalização, com a recuperação destas empresas estratégicas, se inverte: 82% ficam com o país e 18% para as empresas estrangeiras.
As multinacionais protestaram, houve muita pressão, ameaças…
Houve um grande barulho, processos internacionais, e dissemos: quem quiser ir embora que se vá. E se não se foram é porque ainda assim está bem.
Tamanha quantidade de recursos permitiu fazer grandes transformações sociais e econômicas no país. Aprovamos um modelo de desenvolvimento sui generis, próprio dos bolivianos, que não é cópia de ninguém, que vem a se denominar Modelo Econômico Social Comunitário Produtivo (MESCP). Interessante o nome, em que se permitem as empresas mistas e que podem conviver empresas privadas, respeitando seus investimentos e de acordo às normas próprias de nosso país, porém desenvolvendo-se também as iniciativas comunitárias.
Nas questões referentes ao apoio econômico, à irrigação e à micro irrigação, as comunicações para as comunidades, o investimento no conhecimento, vivemos uma mudança social grande. Reduzimos a extrema pobreza de 38% para 15%. E nosso país foi denominado pelas Nações Unidas, pela Unicef, “território livre do analfabetismo”, depois de uma luta muito forte.
Nos destacamos em relação ao combate às enfermidades endêmicas e ao desenvolvimento econômico; fomos por seis anos, de forma consecutiva, o país de maior crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) na região. Das reservas à participação indígena na administração, todos estes aspectos, tudo isso obviamente afetava a um setor radical, a uma direita irreconciliável com a forma de vida que começa a se gestar, com a convivência e o diálogo.
Aprovamos a Lei Contra o Racismo e todo tipo de discriminação, aprovamos uma reforma educativa em que se ensina aos povos indígenas em sua própria língua materna. Aprovamos o direito da mulher e uma série de medidas sociais, avanços que não existem em outros países. Agora seguem se desenvolvendo tendências racistas e discriminatórias
Algo importante que é preciso valorizar: um processo de recondução comunitária da reforma agrária. Através de uma lei, as mulheres das comunidades indígenas e camponesas começaram a ter direito ao acesso à terra em igualdade de condições. Se o homem tem direito, a mulher também tem direito a um título agrário.
Foram aprovados os territórios indígenas ou as terras comunitárias de origem e adotados títulos coletivos, medidas para garantir a segurança e evitar a mercantilização da terra. Todos esses grandes avanços logicamente tinham que incomodar a direita. É assim que de maneira insistente atuaram com força para desestabilizar o governo popular. Além disso, tentaram fracionar o Estado Plurinacional, buscando criar uma fratura, uma divisão, o que conseguimos barrar por meio de fortes mobilizações em defesa da unidade territorial.
Sabemos que isso não parou. Sabemos o quanto persistem. As investigações sobre os processos de desestabilização estão aí e vocês sabem da sua dimensão.
E o retorno de um latifundiário de origem croata como Branko Marinkovic, sujeito que agiu abertamente, com apoio dos Estados Unidos, para separar a chamada “Meia Lua” – os departamentos de Beni, Pando, Santa Cruz e Tarija – da Bolívia?
Aí é onde eu gostaria de entrar. Começou a haver a incidência dos Estados Unidos e dos supostos refugiados que se encontravam no próprio Brasil, com uma tendência muito forte de desestabilização.
Porém é preciso reconhecer que também ocorreram erros no nosso governo, nem tudo foi perfeito. E os erros obviamente cobram seu preço. Começou um processo de desestabilização e também de descontentamento em alguns setores sociais diante da falta de participação popular na tomada de decisões. Um pouco entre nós mesmos começamos a diminuir esse reconhecimento da importância das organizações populares. Sob a alegação de ser um governo inclusivo, nos descuidamos e incorporamos cidadãos que queriam debilitar a participação popular.
E nas eleições é preciso também reconhecer erros eleitorais, de não prever a realização de mudanças paulatinas, não digo permanentes, mas em momentos adequados. Se fez o referendo sobre a ratificação ou não, de modificação ou não, de um artigo da Constituição que poderia permitir a reeleição do presidente. Isso causou problemas e, obviamente, foi aprofundando um descontentamento e indecisões em setores empresariais e políticos no exterior. Não quero mencionar a intromissão dos Estados Unidos ou de outros países e governos para evitar conjecturas, mas apontar personalidades que saíram da Bolívia para não enfrentar processos judiciais, como Gonzalo Sánchez de Lozada, Carlos Sánchez Berzain e Branko Marinkovic, que estava no Brasil, além de outros empresários da direita que se encontravam na Argentina e nos EUA.
E chegamos às eleições de 20 de outubro de 2019, quando há toda uma convulsão social. É um choque em que entram as organizações sociais já acostumadas às lutas sindicais. Nos descuidamos da defesa de toda a estrutura que tínhamos e a direita, os reacionários, os recorrentes fascistas e neofascistas fizeram uma aliança para um golpe militar-policial-cívico. E começaram as mobilizações do Comitê “Cívico” Pró-Santa Cruz, que sempre foi pró-direita, com suas direções e presidentes racistas, assim como foi Camacho, como é atualmente o atual presidente. Bestas humanas.
Os comandantes do Exército traem o processo, da mesma forma que a Polícia, e exigem a renúncia do presidente Evo. Durante 21 dias históricos, o movimento reacionário que se denomina “as pititas” logra seu objetivo e consegue a saída para o exílio e o refúgio de alguns ministros na Embaixada do México na Bolívia.
A partir daí supostamente se consolida um governo transitório cuja única finalidade deveria ser convocar as eleições em 90 dias, como diz a Constituição. Mas começam a adiar e logo chega a desgraça da pandemia. E este governo transitório, atualmente de prorrogação, utiliza a pandemia como cavalo de batalha para se manter no poder. E ocorrem tantas e tão graves irregularidades, negociatas com respiradores, se brinca com a vida humana, com medicamentos e em todo o processo de biossegurança.
Desde março há um processo de encapsulamento, de quarentenas, e não se resolve nada. As comunidades camponesas e indígenas começam a elaborar sua própria medicina tradicional, que é muito respeitada e muito utilizada, porém que é proibida pelo governo e pelas autoridades de alguns locais.
Isto vai impactando negativamente as pessoas e os protestos vão crescendo. São aprovadas as eleições para três de maio de 2020, que não se realizam, voltando novamente a ser postergadas por conta do coronavírus e se adiam as eleições para dois de agosto. Como se não bastasse, por ser o pico mais alto da pandemia, voltam a postergar as eleições para 6 de setembro. E com esse espírito de prorrogação jogam para 18 de outubro.
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