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As chances de uma esquerda plural

Quatro hipóteses sobre as eleições. Em meio à derrota dupla de Bolsonaro, e ao retorno de uma direita sem elã, emerge uma esquerda onde já não há hegemonia clara – e que, ao contrário do lulismo, aspira a ser antissistema

Por Antonio Martins

O Brasil é um carro em ruínas, que continua a descer a ladeira. Mas o condutor já não pode acelerar a marcha e o volante está em disputa. Além disso, alguns passageiros exigem mudar a rota e outros lhes dão ouvidos. Foi só o primeiro turno – há duas semanas cruciais à frente. Mas vale refletir sobre as eleições de ontem: tanto para agir nos próximos dias, quanto para captar que erros elas expõem e que possibilidades revelam.

O bolsonarismo foi o maior derrotado – tanto política como simbolicamente – e poderá pagar muito caro por isso, logo adiante. Em número de prefeituras e de votos, o triunfo é da direita conservadora e fisiológica. Segundo estes mesmos critérios, os partidos progressistas mantiveram-se no mesmo patamar da grave derrota de 2016. Pagam o preço da falta de projetos, da incapacidade de dialogar com os dramas da maioria e de suas divisões internas. Mas há uma novidade relevante. Surgiu, em várias capitais, uma esquerda capaz de reencantar o eleitorado; de olhar para o futuro em vez de voltar-se melancólica para o passado perdido; em alguns casos, de apontar um horizonte pós-capitalista. Aparece de novo, talvez pela primeira vez desde 2013, espaço para desejar o futuro. A seguir, quatro breves hipóteses sobre o que pode ser um início de virada.

1. Batido, Bolsonaro olha no espelho e vê Sarney:

A esta altura, os fracassos principais do presidente já estão falados e repetidos. Seus candidatos em São Paulo e Rio desidrataram e, a certa altura, tentaram dissociar-se de sua imagem, que lhes fazia perder votos em grande quantidade. Das 27 capitais, ele só tem chances de emplacar um aliado próximo em Belém e Fortaleza. No Rio, suas chances, embora estatisticamente perdurem, são ínfimas. Seu filho Carlos Bolsonaro perdeu, para a Câmara carioca, 33% dos votos que havia obtido há quatro anos. Sua ex-esposa Rogéria, que tentou a carreira política confiando herdar parte de seu prestígio, reduziu-se a pouco mais de 2 mil sufrágios, ficando em 266ª lugar. Seu apoio não bastou para sequer para eleger, à vereança de Angra dos Reis, a “Wal do Açaí” (ou “Wal Bolsonaro”) – em favor de quem ele, pateticamente, pediu votos em locução nacional.

A súbita incapacidade de Jair Bolsonaro para puxar votos é um fenômeno a ser melhor estudado, inclusive porque seus índices de popularidade (ainda?) caíram pouco. Talvez esteja relacionada com a decepção do eleitorado, ao perceber que seu discurso “antissistema” era tão falso quanto as “notícias” que ele se compraz em difundir.

Mas, seja qual for o motivo, o fracasso é grave – porque duplo. Bolsonaro inferiorizou-se claramente na queda de braço que trava com o Centrão. Os partidos fisiológicos apoiam o presidente e se tornaram essenciais para sua sustentação política. Mas já vinham exigindo “concessões” (cargos e verbas para emendas parlamentares) cada vez maiores para continuar a fazê-lo. O que fará o capitão se, vitoriosos nas urnas, estes partidos elevarem o preço de seu “apoio”? Romperá com eles ou cederá a sua chantagem? Na primeira hipótese, ficará desguarnecido no Legislativo, num período em o poder econômico exige dele mais contrarreformas. Na segunda, verá multiplicaram-se os sinais públicos de que cede ao fisiologismo da “velha política” e perderá o fator mais estratégico de seu apoio popular.

Será instrutivo e divertido acompanhar, nas próximas semanas e meses, estes trâmites. Hipótese possível: o Centrão avançará lenta mais consistentemente, arrancando concessões cada vez maiores mas evitando desgastar em demasia o capitão, de cujo governo depende. Nesse caso, a presidência se parecerá, aos poucos, com a de José Sarney. Mas se o sentirem demasiado fraco, e se enxergarem que há uma alternativa segura, os partidos fisiológicos abandonarão Bolsonaro à própria sorte – exatamente como fizeram com Dilma Rousseff.

2. Num país sem projeto, o Centrão é rei:

Que ideias mobilizadoras defende o Centrão? Quem líder do bloco é capaz de empolgar a sociedade? Embora seja muito difícil de responder a estas perguntas, algo estranho ocorreu no domingo. O grupo de dez partidos fisiológicos (Progressistas, PSD, PL, PTB, Republicanos, PSC, Solidariedade, Avante, Patriota e Pros) que melhor expressa o esvaziamento da política foi o maior vitorioso. O PSD, de Gilberto Kassab, passou de 8,1 para 10,6 milhões de votos. O PP, que já foi comandado por Paulo Maluf, de 5,7 para 7,5 milhões. O Republicanos, de 3,9 milhões para 5,1 milhões.

Embora não integrem mais o Centrão oficialmente, outros partidos conservadores deram-se bem. Destaca-se entre eles o DEM, que passou de 5,1 para 8,3 milhões votos. E embora tenham perdido apoio, o MDB, com 10,9 milhões e o PSDB, como 10,7 milhões, mantiveram-se como partidos mais sufragados. Todos eles demonstraram, há apenas dois anos, incapacidade completa de conquistar o eleitorado. Os tucanos, por exemplo, que começaram a última disputa eleitoral (em que concorreram com Geraldo Alckmin) com mais recursos, mais tempo de TV e mais apoio empresarial que qualquer outro partido, terminaram com menos de 5% dos votos. Por que esta mudança, agora?

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/estadoemdisputa/chances-de-uma-esquerda-plural/

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