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As mil faces da técnica e a Gambiarra Popular

Em sua longa trajetória, avanço técnico-científico desembocou numa razão cínica, alienada dos anseios coletivos. Inverter sua lógica exigirá “ciência social da Ciência” — e ousadia para desmistificá-la em garagens e cooperativas…

Por Ricardo Neder

As múltiplas abordagens das Ciências Sociais e Humanidades sobre a técnica parecem perseguir uma única pesquisa, a compreensão de um momento zero, constituinte, marcado pelo conhecimento teórico sobre a interação teórico-práxis presente no trabalho mediado pelos objetos. Os sentidos deste momento de conversão do conhecimento em técnica é também práxis. Estamos diante da:

1.1. Técnica no sentido da antiga utopia espontânea datada, pelo menos, da época de Aristóteles, segundo a qual o trabalho humano poderia ser suavizado pelas ferramentas construídas pelo homem. Elas o livrariam das terríveis dores do labor, suavizando sua vida biológica (as rocas se poriam a fiar sozinhas, e as ferramentas poderiam ceifar e colher a colheita sem auxílio dos braços humanos).

1.2. Técnica no sentido da utopia de um domínio sobre um duplo problema: encontrar a linguagem que possa ser universal, e expressar seus achados sobre a matéria; preocupação datada desde, pelo menos, Lulio, Bacon, Galileu, Descartes, Copernico, Newton, Leibniz que propuseram fazer do conhecimento científico um fato moral, em si coerente com valores matemáticos, assegurados pela medição de tal forma que não pudesse haver fato material desvinculado de valores correspondentes no plano matemático. Este fato é em si um dado moral, no sentido de que a ética da verdade era orientadora de toda atividade científica. Esta está associada ao número, ao zero, à sucessão, logicidade da computação que se torna linguagem universal.

1.3. Técnica no sentido de que as demais esferas da sociedade relacionadas com o trabalho, a religião, a família, o Estado e os preceitos morais, biológicos e psicológicos orientadores do Sujeito fossem afastados sob o manto da não-pertinência (lei do terceiro excluído), século depois assumida pelo positivismo como neutralidade e autonomia científica, sobretudo como garantia da liberdade necessária ao trabalho do cientista na crise teológico-política do antigo regime.

1.4. Técnica no sentido da busca de certo ideal de vocação dos cientistas como um grupo social específico que se vocaciona para a ciência (parte de uma camada social mais ampla, na qual não se misturam os tecnólogos, a quem são delegadas competências da fabricação e da construção).

1.5. Técnica no sentido complementar de que esta nova sociedade orientada por ideais científicos e técnicos pudesse vir a adotar uma moralidade própria, baseada na profissão de fé positivista que assume (fins do Séc. XIX) a missão de tornar a atividade científica dotada de maior autonomia

diante das demais esferas de valor da vida social, do comércio, da indústria e passasse a ser núcleo da reforma moral da sociedade. Seu élan vital de transformação formou uma tríade inseparável em torno de poucos fundamentos sociológicos de prevalência étnica (branco), cultural (europeu ocidental) e de gênero (homem) – sendo aplicada aos demais a regra do terceiro excluído.

1.6. Técnica no sentido de esclarecer que desde meados do Séc. XIX até a metade do Séc. XX a destruição sistemática da moral que não fosse orientada pelo Positivismo, tornou-se o verdadeiro furor civilizatório. De tal monta que podemos chamar a isto a conversão do ideal renascentista de uma máquina do mundo, para realizar o desmanche de outra moralidade que não fosse a positivista. No Séc. XXI assistimos o retorno do reprimido: o próprio positivismo parece tomado por toda sorte de fundamentalismo religioso (primado do monoteísmo judaico, muçulmano e cristão).

1.7. Técnica no sentido de assumir a (des)construção e desmanche da máquina do mundo (outrora, do Século IX ao XIII, um ideal de conhecimento verdadeiro na representação do primeiro Renascimento Árabe na Andaluzia, e no romance camoniano e dantiano) convertida em terror movido pelas aplicações bélicas nos Séculos XIX e XX.

1.8. Técnica no sentido de converter a racionalização da vida tributo à e atributo da racionalidade científica, entendida como uma razão iluminista e racionalidade da técnica, simultaneamente convertidas em razão tecnocientífica industrial (Séc. XXI); à qual cumpriria observar a crueza de uma racionalidade destituída de qualquer sombra de incerteza ou acaso, apenas sujeita aos fracassos que reiteram a necessidade de achar a resposta certa.

1.9. Técnica no sentido de que falam os artistas ao considerar que a linguagem do corpo, da música, da literatura e da arte, de outras moralidades é polifônica, atinge o imaginário e escapa da racionalidade científica e instrumental.

1.10. Técnica no sentido de que toda fusão com a base de conhecimento fundamentada na ciência a converte em tecnologia (lançando as mediações estéticas desde a música e a física, até a biologia {zoé} e a política {bios} para os subterrâneos do ser social).

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