Clipping

Belluzzo: as cloacas de onde Trump emergiu

Como disse o filósofo Fredric Jameson: os quatro pilares do velho capitalismo – constituições, contratos, cidadania e sociedade civil – são hoje vadios maltrapilhos. Foi esta decadência que gerou o “neo”-fascismo. Por isso, não bastará derrotá-lo

Luiz Gonzaga Belluzzo

Em 4 de abril de 2017, Mary Trump, sobrinha do tio Donald, tomou um trem da Amtrak com destino a Washington, D.C, para um jantar em família na Casa Branca. Dez dias antes, ela recebera um e-mail convidando para uma celebração de aniversário das tias Maryanne, de 80 anos, e Elizabeth, de 75. Seu irmão mais novo, Donald, ocupava o Salão Oval desde janeiro.

Quando adentrou seu quarto no Trump International Hotel, a sobrinha Mary encontrou o nome Trump estampado em todos os lugares, em tudo: xampu Trump, condicionador Trump, chinelos Trump, boné Trump, polimento de sapato Trump, kit de costura Trump e roupão TRUMP. “Abri a geladeira, peguei uma garrafa de vinho branco Trump, e derramei na minha garganta Trump, para que pudesse passar pela minha corrente sanguínea Trump e atingir o centro de prazer do meu cérebro Trump.”

Mary escreveu um livro devastador para narrar a trajetória do titio ególatra e tosco. Não por acaso, o livro recebeu o título Too Much and Never Enough: How My Family Created the World’s Most Dangerous Man. 

Em uma entrevista concedida a Bob Woodward na Casa Branca, o Homem Mais Perigoso do Mundo confessou: “Eu boto a raiva para fora. Eu boto a raiva para fora. Sempre gostei. Eu não sei se isso é um ativo ou um passivo, mas seja o que for, eu faço”. Trump exprime o declínio dos valores e das ideias que inspiraram os Estados Unidos na construção da chamada ordem mundial do pós-Guerra. Terminado o conflito, as forças vitoriosas, democráticas e antifascistas trataram de criar instituições destinadas a impedir a repetição da desordem destrutiva que nascera da rivalidade entre as potências e da economia destravada.

Nos idos de 2018, Martin Wolf, editor do Financial Times, denunciou as manobras de Donald Trump para implodir a ordem mundial. “São características destacadas do comportamento de Trump suas invenções, sua autocomiseração e sua prática da intimidação: os outros, inclusive os aliados históricos, estão “zombando de nós” em relação ao clima ou “nos enganando” em relação ao comércio exterior. A União Europeia, argumenta ele, “foi implantada para tirar proveito dos EUA, certo? Não mais… Esse tempo acabou”.

O filósofo Fredric Jameson, no livro A Cultura do Dinheiro, já advertia no início do milênio: “Os quatro pilares ideológicos, jurídicos e morais do alto capitalismo – constituições, contratos, cidadania e sociedade civil – são, hoje, vadios maltrapilhos, mas sempre lavados, barbeados e vestidos com roupas novas para esconder sua verdadeira situação de penúria”. 

O magnífico projeto iluminista-burguês da liberdade, igualdade e fraternidade, avaliado em seus próprios termos e objetivos, está fazendo água diante da alucinante e alucinada competição entre as sociedades e suas lideranças para mergulhar o planeta nos esgotos da barbárie.

Não podemos colher outro ensinamento do debate Trump-Biden escancarado nas telas planas das tevês e repercutido no terraplanismo das redes sociais.

A civilização ocidental, disse Gandhi, teria sido uma boa ideia. Imaginei, santa ingenuidade, que as batalhas do século XX, além do avanço dos direitos sociais e econômicos, tivessem finalmente estendido os direitos civis e políticos, conquistas das “democracias burguesas”, a todos os cidadãos. Mas talvez estejamos numa empreitada verdadeiramente subversiva em seu paradoxo: a construção da República dos Bárbaros. Uma novidade política engendrada nos porões da inventividade contemporânea, regime em que as garantias republicanas recuam diante dos esgares da máquina movida pelo narcisismo dos ressentidos.  

Esses deserdados da civilidade simulam retidão moral para praticar as brutalidades dos homens de bem. Os direitos individuais e os valores da modernidade são tragados no redemoinho do moralismo particularista e exibicionista dos amorais. Trump exibiu de forma contundente o papel do ultraje pessoal na avacalhação do debate público. A ofensa pessoal desqualificadora usada como argumento e a resposta no mesmo tom são instrumentos da brutalização das consciências.

O expediente de satanizar o adversário revela indigência mental e despreparo para a convivência democrática. É, portanto, saudável exorcizar as tentações do maniqueísmo, o bem contra o mal. No debate, Trump, ao colocar os supremacistas brancos em alerta contra os movimentos antirracistas, desterrou o conflito social para fora da ordem jurídica. Nesse gesto convocou uma guerra civil, o aniquilamento do outro.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/as-cloacas-de-onde-trump-emergiu/

Comente aqui