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Bolívia: a liberdade se recupera nas ruas

Há onze dias, marchas e bloqueios param o país pela volta à democracia. Governo esfacela-se, em meio a crise sanitária e social. Escancara-se o choque entre maiorias e elite branca, que deu o golpe. Mas eleições serão batalha complexa

Por Anton Flaig e Denis Rogatyuk, na Jacobin | Tradução: Antonio Martins

Nove meses após o golpe militar que depôs o presidente Evo Morales, de esquerda, o governo boliviano que resultou deste ato suspendeu as eleições pela terceira vez. Em resposta ao lance da presidente “de fato” Jeanine Áñez, que adiou o pleito, a Central Operária Boliviana (COB) iniciou marchas em todo o país, com cerca de 500 mil pessoas presentes em El Alto, o bairro proletário de la Paz. Ao dirigir-se à multidão, o secretário geral da COB, Juan Carlos Huarachi, ameaçou uma greve geral indefinida, se as eleições não fossem realizadas conforme planejado.

A manifestação de El Alto foi a maior desde o dia seguinte à derrubada de Evo em novembro, quando indígenas que protestavam contra o golpe foram “mortos como animais”, num massacre que matou ao menos 37. Ainda assim, o presidente do Tribunal Supremo Eleitoral (TSE), Salvador Romero, indicado pelo regime que surgiu do golpe, ignorou os protestos. Em 3 de agosto, a greve geral indefinida começou, Protestos, marchas e bloqueios de rodovias espalharam-se rapidamente pela Bolívia. Em 24 horas, mais de 75 grandes estradas e avenidas, nas províncias de La Paz, Cochabamba, Santa Cruz, Oruro e Potosi estavam completa ou parcialmente bloqueadas, por ramos locais dos sindicatos e movimentos sociais.

Os bloqueios propostos pela COB foram amplamente apoiados por sindicatos e movimentos sociais. Entre eles estão a Federação Sindical dos Trabalhadores Mineiros Bolivianos (FSTMB), os plantadores de coca (as Seis Federações do Trópico, de Cochabamba), a federação feminista Bartolina Sisa, o federação camponesa Tupac Kitari e a Confederação Sindical das Comunidades Interculturais da Bolívia (CSCIB). Estas forças têm uma história de mobilizações de massa contra governos neoliberais, que inclui a histórica Guerra do Gás, de 2003 e as Guerras da Água dos anos 2000, em Cochabamba. Em 6 de agosto, depois dos primeiros dias de bloqueio, o Tribunal Supremo Eleitoral foi forçado a abrir diálogo com os movimentos socais, com vistas a fixar a data final das eleições.

Depois de uma noite de negociações tensas em 8/8, que envolveu a COB, o TSE e as duas casas da Assembleia Legislativa Plurinacional, não se chegou a acordo algum. O tribunal continua a rejeitar qualquer tentativa de aproximar as eleições da data original de 6 de setembro. No dia segunte, um esforço do regime liderado por Áñez, para estabelecer um diálogo político nacional, terminou em fracasso humilhante, após boicote não apenas do Movimento ao Socialismo (MAS) de Evo, mas de praticamente todos os partidos, exceto a aliança “Juntos”, da própria presidente golpista, e duas minúsculas organizações de direita.

O que parece mais promissor é o fato de, sob a liderança de Huarachi, a COB ter retomado suas raízes históricas de luta pela democracia e contra as ditaduras militares. Na verdade, embora a confederação esteja agora atuando com firmeza contra o esforço do golpismo para adiar as eleições, há apenas alguns meses sua postura era bem menos robusta. Com a tentativa do governo de evitar o teste das urnas, os próximos dias e semanas testarão o poder dos movimentos sociais bolivianos – e sua disposição de lutar ombro a ombro com Evo e seus aliados.

Esta relação não é automática. Quando a Bolívia encaminhou-se para eleições presidenciais, em outubro de 2019, a aliança entre trabalhadores urbanos mestiços e movimentos sociais indígenas, que por muito sustentara o governo, começou a enfraquecer. Após 14 anos no governo, não restava muito do espírito revolucionário que levou o presidente e o MAS ao poder. Embora Evo seja o primeiro presidente indígena da Bolívia, esta distinção tinha começado a envelhecer.

Quando os bolivianos foram às urnas, em 20 de outubro de 2019, para decidir se dariam ao presidente um novo mandato, ele obteve cerca de 47% dos votos populares. Pode parecer bastante, numa disputa entre muitos candidatos. Mas, em comparação, em 2014 ele obteve uma vitória esmagadora, com 61,36% de apoio. No referendo constitucional de 2016, sobre o direito de Evo e de seu vice, Álvaro García Linera, a disputar um histórico quarto mandato, a votação no MAS caiu abaixo de 50% pela primeira vez desde 2005 – uma derrota-chave, que desencadeou um efeito-dominó até levar ao golpe de novembro de 2019.

Evo acabou por obter o direito a disputar as eleições de 2019, graças a uma decisão do Tribunal Constitucional Plurinacional. Mas a oposição de direita dedicou-se a criar uma falsa narrativa, segundo a qual a Bolívia havia se convertido num “narco-Estado” e numa “ditadura”, devido à recusa do presidente a aceitar os resultados do referendo. Esta narrativa encontrou sua expressão na violência extrema praticada durante a campanha eleitoral de outubro passado, organizada por grupos de ultradireita como o Movimento 21F, o Grupo de Resistência Jovem Cochala e a União Jovem Crucenha [de Santa Cruz de la Sierra], e seguida por um motim da polícia, no início de novembro, e o golpe militar em 10/11.

Os redutos indígenas do MAS sofreram o peso da violência que cercou as eleições de outubro. Os dois grandes massacres ocorreram em Sacaba (Cochabamba), contra cocaleiros leiais a Evo, das Seis Federações do Trópico; e em Senkata, contra os indígenas Aymara auto-organizados que residem em El Alto (Fejuve).

Diante de uma perseguição tão intensa, nem a Fejuve, nem a COB, defenderam o governo Evo com firmeza. Com uma campanha gigantesca de mídia da Organização dos Estados Americanos (OEA), alardeando suposta “fraude eleitoral”, e com grandes manifestações de direita e a exigência da renúncia de Evo, apresentada pelos militares e a polícia, Hauarach, o líder da COB, tornou-se parte dos movimentos pela “pacificação”.

Com muitos líderes sindicais, ele recebeu ameaças sérias de morte; e quando a polícia e os militares forçaram Evo a renunciar, Huarachi comentou que o presidente deveria fazê-lo, se o gesto ajudasse a “pacificar o país”. Muitos apoiadores fiéis do MAS viram isso como traição – e o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, chamou Huarachi de traidor.

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