Mais de meio milhão de hectares ardem às portas da floresta, enquanto a crise ambiental agita a disputa eleitoral
Fernando Molina
Mais de meio milhão de hectares de mata estão queimando no departamento boliviano de Santa Cruz, às portas da Amazônia, que enfrenta dois anos consecutivos de secas e altas temperaturas. A presidenta interina do país, Jeanine Áñez, declarou “emergência nacional” nesta quarta-feira, o que lhe permitirá receber ajuda internacional para apagar os incêndios. Desta forma, se distancia de seu antecessor, Evo Morales, que no ano passado enfrentou uma situação semelhante, mas se negou a decretar a emergência, ignorando os apelos de moradores do leste da Bolívia. Ele argumentava que o país podia resolver o problema sozinho. Os incêndios deste ano são até agora bastante mais contidos que os de 2019, que foram particularmente graves, mas têm em comum com aqueles a proximidade com eleições presidenciais, com o consequente jogo político que propicia.
“Estão perguntando se recorreremos à ajuda internacional… dizemos que vamos recorrer absolutamente a tudo que nos ajudar a controlar os incêndios, a evitar a desgraça que vivemos no ano passado”, afirmou Áñez. A presidenta também prometeu agir energicamente contra os responsáveis pelas queimadas, se conseguir identificá-los.
Analistas e historiadores consideram que a queda de Morales começou com a reação de parte da opinião pública aos incêndios que há um ano destruíram cinco milhões de hectares e foram especialmente dolorosos para a população de Santa Cruz, porque comprometeram a mata seca de uma zona chamada Chiquitanía, cuja madeira é muito valiosa e usada no artesanato e arquitetura regionais. Como resultado desse desastre, a oposição organizou grandes manifestações de protesto contra Morales quando faltavam poucas semanas para as eleições, as quais viriam a ser questionadas por fraudes e acabariam sendo anuladas em meio a uma grave crise política.
Agora, a mata chiquitana está novamente em risco. Áñez afirmou que sufocar os incêndios é sua prioridade, acima da campanha eleitoral da qual participa, embora até agora não entre os candidatos favoritos. Ao mesmo tempo, ela anulou um decreto de seu antecessor que autorizava o desmatamento para possibilitar atividades agropecuárias e o uso do chaqueo (queimadas controladas) para essa tarefa. Supõe-se que este decreto tenham intensificado as queimadas que os agricultores tradicionalmente realizam após cada safra, nos últimos dias do inverno, para deixar o terreno mais fácil de ser capinado. O Gabinete boliviano anunciou que iniciará um julgamento de responsabilidades por este assunto contra o ex-presidente Morales, que já é réu em aproximadamente uma dezena de processos judiciais por diversos delitos.
Os ambientalistas consideram que o gesto de Áñez é insuficiente e tem caráter puramente eleitoral, já que o decreto que ela anulou é apenas um pequeno componente do conjunto de normas que promovem a ampliação dos cultivos e pastos de Santa Cruz e outras partes do país, e que os ativistas denominam de “leis incendiárias”.
As causas da inusitada magnitude e da recorrência dos incêndios florestais em Santa Cruz são intensamente debatidas. Para os dirigentes políticos desta região, os incêndios tiveram início com a chegada à planície da Chiquitanía de comunidades indígenas das chamadas “terras altas”, que não sabem como cuidar devidamente da mata. Para as organizações ambientalistas, devem-se à ambição de ruralistas de ampliar seus cultivos e pastos à custa de áreas florestais. O Plano de Desenvolvimento Pecuário 2020-2030 estabelece um crescimento de 13 para 20 milhões de hectares na superfície dedicada a essa atividade. O Governo anterior definiu com as empresas do agronegócio que a superfície cultivada seria ampliada de 2,5 milhões para 10 milhões de hectares. Estes projetos, se forem cumpridos, exigiriam um forte desmatamento, pois o território comprometido é principalmente florestal. Os ambientalistas os consideram “predadores”. Quando era presidente, Morales, primeiro camponês a governar o país, coincidiu com pecuaristas e empresas do agronegócio no objetivo de aumentar radicalmente a exploração da terra. Por outro lado, chocou-se com estas mesmas elites por causa da migração de indígenas aimarás e quéchuas para Santa Cruz.
Até agora o Governo interino de Áñez, que mudou muitas orientações do Governo anterior, não tinha emendado nenhuma das “normas incendiárias” que herdou. Por outro lado, facilitou e ampliou a importação de sementes geneticamente modificadas, uma medida que também é considerada favorável ao desmatamento. A presidenta nasceu em Beni, um departamento amazônico com grande atividade pecuarista, na fronteira com Rondônia. Seu partido é o Movimento Democrata Social, oriundo do leste boliviano e, por isso, estreitamente relacionado com a agroindústria nacional.
Veja em: https://brasil.elpais.com/internacional/2020-09-17/bolivia-declara-emergencia-nacional-por-causa-de-incendios-na-amazonia.html
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