Cantor e compositor baiano estreia no Festival de Veneza o documentário ’Narciso em férias’, em que narra sua prisão durante a ditadura militar brasileira
Joana Oliveira
É impossível cantar o Hino Nacional com a melodia da Tropicália. Os versos do Hino são decassílabos, enquanto os da música composta e cantada por Caetano Veloso têm oito sílabas poéticas. Além disso, a acentuação poética das duas canções é totalmente diferente. Isso foi o que respondeu o artista baiano no interrogatório a que foi submetido pela ditadura militar brasileira, que o acusou de fazer “terrorismo cultural” e o manteve preso, junto com o amigo Gilberto Gil, de 27 de dezembro de 1968 —14 dias depois do AI-5— a 19 de fevereiro de 1969, uma quarta-feira de cinzas. Os dois meses de cárcere, cuja primeira semana foi em uma solitária, foram descritos pela primeira vez na autobiografia Verdade Tropical (Cia. das Letras, 1997) —que ganhou uma nova edição em 2017—. Um ano depois, os diretores Renato Terra e Ricardo Calil gravaram o documentário Narciso em férias, homônimo ao capítulo em que Caetano narra os infortúnios de sua prisão semi-clandestina. A coprodução Uns Produções e VideoFilmes estreia nesta segunda-feira no Festival de Veneza, fora de competição, e é o único filme brasileiro no evento.
A ideia foi de Paula Lavigne, ou Paulinha, como Caetano se refere amorosamente à sua mulher, produtora e empresária. “A entrevista comigo seria a base para um documentário mais convencional, com outras locações e outras entrevistas. Ao ver o material, os dois diretores acharam que ali tinham tudo”, conta o cantor em entrevista por e-mail ao EL PAÍS. De fato, a imagem de Caetano sentado em uma cadeira simples, poucas vezes com o violão na mão a cantar, no fundo cinza de uma sala vazia do espaço cultural inacabado da Cidade das Artes, no Rio, é mais que suficiente para embeber o espectador na história que, embora pessoal, é parte de um dos períodos mais tenebrosos da história do Brasil.
Durante a prisão, Caetano secou. Não conseguia chorar e, no que Gil chamou do “silêncio do sexo”, sua libido minguou: tampouco conseguia masturbar-se, algo que, como ele mesmo conta, sempre havia sido uma atividade quase terapêutica. A ereção não vinha. Sua superstição, no entanto, nascida com ele em Santo Amaro, na Bahia, intensificou-se entre as celas. A visão de uma barata era um mau agouro, assim como canções como Súplica, de Orlando Silva, e Onde o céu azul é mais azul, de Francisco Alves. Ainda hoje, o mero título desta última fica preso na garganta e faz água nos olhos de Caetano. É como que impronunciável. Os bons presságios, por outro lado, ficavam a cargo de músicas como Hey Jude, dos Beatles, e Irene, a única que compôs no cárcere, em lembrança e saúde do sorriso da irmã caçula.
A maior bem-aventurança era, certamente, a presença de Dedé Gadelha, sua esposa na época que, tal qual uma detetive, descobriu onde Caetano estava preso e insistiu até conseguir visitá-lo. Em Narciso em Férias, o único momento em que ele vai às lágrimas é quando recorda o sargento que facilitou os encontros entre os amantes.
Pergunta. Há quem diga que revisitar e recontar momentos traumáticos são um exorcismo emocional. O que o fez recontar sua prisão, narrada em Verdade Tropical, em um documentário? Trata-se de mais um exorcismo?
Resposta. Tomara. Faz uns três anos, sugeri a publicação em separado do capítulo Narciso em Férias, de Verdade Tropical. Paula Lavigne teve a ideia de fazermos um documentário sobre o que é narrado ali. Ela, produtora e empresária, pensava em economizar a energia que seria gasta em tentar dizer “não” a possível convites para levar aquilo às telas. Mas também queria que, se tomássemos a decisão de fazer, que tudo fosse feito de modo belo e honesto. Como eu tinha gostado imensamente de Uma Noite Em 67[sobre o festival de música na antiga TV Record], ela convidou Renato Terra e Ricardo Calil para dirigir. E nos levou para a Cidade das Artes, para que uma entrevista comigo fosse rodada na sala vazia do que fora construído para ser um cinema. A entrevista seria a base para um documentário mais convencional, com outras locações e outras entrevistas. Ao ver o material, os dois diretores acharam que ali tinham tudo.
P. No livro, é nítido seu agradecimento ao sargento, “um preto baiano”, que facilitou os encontros com Dedé em sua cela. No documentário, no entanto, ao lembrar que ele foi preso, posteriormente, você chega a chorar. Que sentimentos o gesto daquele homem e sua lembrança despertam?
R. Não que eu não tenha me emocionado ao escrever certas frases no capítulo do livro. Mas falar é outra coisa. E estar diante do fato de não lembrar o nome do generoso sargento baiano me desarmou.
Saiba mais em: https://brasil.elpais.com/cultura/2020-09-07/caetano-veloso-minhas-expectativas-sobre-o-brasil-nao-sao-tanto-a-esperanca-sao-mais-a-responsabilidade.html
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