Trump, em minoria, tentará melar as eleições, recorrendo a milícias armadas. Mas a economia está na lona, a covid devasta o país e espalha-se, entre a juventude, a crítica ao capitalismo. O Império, em transe, enfrenta uma eleição decisiva
Por Noam Chomsky entrevistado por C.J. Polychroniou, no Truthout | Tradução por Simone Paz Hernández
Embora ainda seja muito cedo para prever algum resultado da eleição presidencial de 3 de novembro nos EUA, Donald Trump vai ficando pra trás nas pesquisas nacionais, enquanto faz truques eleitorais sujos na esperança de derrotar o desafiante democrata, Joe Biden. Grande parte da esperança de vitória de Trump reside em sua campanha de “lei e ordem”, que promove mentiras sobre fraudes por correspondência a fim de desacreditar preventivamente os resultados eleitorais se eles forem a favor de Biden. Nesta entrevista exclusiva para o Truthout, Noam Chomsky discute o significado nacional e internacional da recusa de Trump em se comprometer com uma “transição pacífica do poder” e sua confiança em teorias da conspiração.
Noam, a quase duas semanas das eleições norte americanas mais importantes da história recente, a campanha de Trump continua a repetir a mensagem de “lei e ordem” — velha tática política na qual os líderes autoritários sempre confiaram para fortalecer seu controle sobre as pessoas e sobre o país — mas se recusa a aceitar uma “transição pacífica do poder”, se perder para Biden. Qual a sua opinião sobre esses assuntos?
O recurso à “lei e à ordem” é normal, quase reflexivo. Já a ameaça de Trump de se recusar a aceitar o resultado da eleição, não. É algo novo em democracias parlamentares estáveis.
O simples fato de essa contingência estar sendo discutida revela a eficácia da bola de demolição de Trump para minar a democracia formal. Podemos nos lembrar que Richard Nixon, não exatamente reconhecido por sua integridade, tinha alguma razão para supor que a vitória na eleição de 1960 havia lhe sido roubada devido a maquinações do Partido Democrata. Ele não questionou os resultados, colocando o bem-estar do país acima da ambição pessoal. Al Gore fez o mesmo em 2000. A ideia de que Trump possa colocar qualquer coisa acima de sua ambição pessoal — até mesmo se preocupar com o bem-estar do país — é ridícula demais para ser discutida.
Certa vez, James Madison disse que a liberdade não é protegida por “barreiras de pergaminho” — ou seja, por palavras no papel. Em seu lugar, as ordens constitucionais pressupõem boa-fé e certo compromisso, embora limitado, com o bem comum. Quando isso se esvai, é porque migramos para um mundo sócio-político diferente.
As ameaças de Trump são levadas muito a sério, não apenas em extensos comentários na mídia e jornais convencionais, mas até mesmo dentro dos círculos militares — que podem ser compelidos a intervir, como ocorre nas pequenas ditaduras, cujo modelo é o mesmo de Trump. Um exemplo marcante é uma carta aberta enviada ao mais alto oficial militar do país, o presidente do Joint Chiefs General, Mark Milley, por dois comandantes militares aposentados, mas muito renomados: os tenentes-coronéis John Nagl e Paul Yingling. Eles advertem Milley: “O presidente dos Estados Unidos está subvertendo nosso sistema eleitoral de forma ativa, e ameaça permanecer no cargo, desafiando a nossa Constituição. Em alguns meses, você terá que escolher entre desafiar um presidente fora da lei ou trair seu juramento constitucional” que exige defender a Constituição contra todos os inimigos, “estrangeiros e domésticos ”.
Hoje, o inimigo hoje é doméstico: um “presidente sem lei”, continuam Nagl e Yingling, que “está montando um exército privado capaz de frustrar não apenas a vontade do eleitorado, mas também as capacidades da aplicação da lei comum. Quando essas forças colidirem em 20 de janeiro de 2021, os militares dos EUA serão a única instituição capaz de defender nossa ordem constitucional”.
Com os republicanos do Senado “reduzidos a suplicantes” e tendo abandonado quaisquer resquícios de integridade, o general Milley deveria estar preparado para enviar uma brigada da 82ª Divisão Aerotransportada para dispersar os “homenzinhos verdes” de Trump, aconselham Nagl e Yingling. “Se você se mantiver em silêncio, será cúmplice de um golpe de Estado.”
É difícil de acreditar, mas o próprio fato de tais pensamentos serem expressos por vozes sóbrias e respeitadas — e ecoados por todo o mainstream — é razão suficiente para se preocupar profundamente com as perspectivas da sociedade estadunidense. Raramente cito o correspondente sênior do New York Times, Thomas Friedman, mas quando ele pergunta se poderia ser esta a nossa última eleição democrática, ele não está se juntando a nós, “homens selvagens a postos” — para citar o termo de McGeorge Bundy aplicado àqueles que não se conformam automaticamente com a doutrina aprovada.
Enquanto isso, não devemos ignorar como os líderes do “exército privado” de Trump demonstram seu fervor, em seu já usual terreno de implantação: o cruel deserto do Arizona — para o qual os EUA, desde Clinton, têm enviado pessoas miseráveis, que fogem da destruição que nós mesmos causamos em seus países. Esquivando-nos, assim, de nossa responsabilidade legal e moral de oferecermos a eles uma oportunidade de asilo.
Quando Trump decidiu aterrorizar Portland, no Oregon, ele não enviou os militares, provavelmente com o receio de que eles se recusassem a seguir suas ordens — como acabara de acontecer em Washington, DC. Enviou paramilitares, os mais ferozes deles: a unidade tática BORTAC, da Patrulha de Fronteira, que goza de liberdade e “rédea solta” para acabar com os “malditos da terra”.
Imediatamente, depois de cumprir as ordens de Trump em Portland, o BORTAC voltou aos seus passatempos regulares, destruindo um frágil centro de assistência médica no deserto, onde voluntários tentam fornecer ajuda médica, ou até mesmo água, a pessoas desesperadas que conseguiram, de alguma maneira, sobreviver.
Não satisfeito com este feito, o BORTAC logo voltou a suas tarefas. Talvez, quem vem enfrentando o exército particular de Trump queira saber um pouco mais sobre ele. Aqui vai um trecho de um relatório oficial da cena, oferecido pela organização humanitária No More Deaths:
Após o pôr do sol de ontem, no dia 5 de outubro, a Patrulha de Fronteira dos EUA entrou na estação de ajuda humanitária No More Deaths, em Byrd Camp, com um mandado federal, para realizar o segundo ataque noturno em dois meses. Os voluntários foram retidos por três horas, enquanto doze pessoas que estavam recebendo cuidados médicos, comida, água e abrigo contra o calor de mais de 38º Celsius foram apreendidas.
Desde a operação anterior, ocorrida em 31 de julho, a Patrulha de Fronteira recusou em várias ocasiões uma reunião com os voluntários para discutir acordos compartilhados anteriores, que defendiam o direito de fornecer ajuda humanitária. O chefe do setor de Tucson enviou aos representantes do No More Deaths uma carta formal afirmando essa recusa.
Numa grande exibição de força armada, a Patrulha de Fronteira baixou no campo com um tanque blindado, drones, um helicóptero e muitos veículos identificados e não identificados. Agentes, armados com rifles de assalto, perseguiram e aterrorizaram aqueles que recebiam cuidados, enquanto o helicóptero flanava baixo sobre eles, espalhando poeira e detritos, tornando quase impossível enxergar. A Patrulha de Fronteiras destruiu janelas, destroçou portas e destruiu infraestrutura e suprimentos. Isso ocorreu depois de ter vigiado pesadamente o acampamento e de ter patrulhado seu perímetro, criando um ambiente antagônico para os que recebem auxílios, desde a note de 3 de setembro.
Esses são os elementos profissionais do exército privado de Trump, apoiados pelas milícias armadas, que defendem doutrinas da supremacia branca — e que o FBI e o Departamento de Segurança Interna, consideram a maior ameaça doméstica dos EUA, aumentando drasticamente os crimes relacionados ao terrorismo durante os anos de governo Trump, de 20% em 2016, para quase 100% em 2019.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/chomsky-descreve-grande-batalha-americana/
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