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Chomsky: Não podemos deixar que os mestres do capital definam o mundo pós-Covid

Com o surto global da COVID-19, muitos estão achando que uma nova ordem econômica e política está inevitavelmente a caminho. Será?

Por C.J. Polychroniou / imagem: Jeremy Hogan

Com o surto global da COVID-19, muitos estão achando que uma nova ordem econômica e política está inevitavelmente a caminho. Será? Nos EUA, a classe endinheirada, que prosperou sob Donald Trump, não cairá sem fazer o que estiver ao seu alcance para garantir que as pressões populares por reformas radicais sejam bloqueadas, diz o intelectual mundialmente famoso, Noam Chomsky. Chomsky também nos lembra que o racismo aberto se intensificou sob Trump e que a violência policial é um sintoma da supremacia branca subjacente que atormenta a sociedade norte-americana. Enquanto isso, as políticas antiambientais de Trump e suas decisões de jogar no lixo os tratados de controle de armas estão aproximando o mundo cada vez mais de um holocausto ambiental e nuclear.

C.J. Polychroniou: Muitos têm argumentado, de várias partidos, que a COVID-19 foi um divisor de águas. Você concorda com esse ponto de vista ou estamos falando de uma situação temporária, em que o cenário mais provável, depois que a crise de saúde acabar, é o retorno à rotina usual dos negócios?

Noam Chomsky:
 Não há como prever. Aqueles que têm a responsabilidade primária pelas múltiplas crises que hoje nos ameaçam trabalham duro, incansavelmente, para garantir que o sistema que eles criaram, e do qual eles se beneficiaram grandemente, persista – e de uma forma ainda mais severa, com vigilância mais intensa e outros meios de coerção e controle. Forças populares estão se mobilizando para combater esses desenvolvimentos malignos. Eles buscam desmantelar as políticas destrutivas que nos levaram a esse momento particularmente perigoso da história da humanidade e avançar em direção a um sistema mundial que dê prioridade aos direitos e necessidades humanos, não às prerrogativas do capital concentrado.

Devemos dedicar alguns momentos para esclarecer para nós mesmos o que está em jogo na amarga guerra de classes, que está tomando forma à medida que o mundo pós-pandemia vai sendo forjado. Há muito em jogo. Tudo está enraizado na lógica suicida do capitalismo não regulamentado e, no nível mais profundo de sua própria natureza, tudo se tornou mais aparente durante a praga neoliberal dos últimos 40 anos. As crises foram exacerbadas por virulências que surgiram à medida que essas tendências destrutivas seguiam seu curso. Os mais ameaçadores estão aparecendo no estado mais poderoso da história da humanidade – o que não é um bom presságio para um mundo em crise.

Os riscos foram definidos no Doomsday Clock (Relógio do Apocalipse ) em janeiro passado. A cada ano da presidência de Trump, o ponteiro dos minutos é aproximado para meia-noite. Dois anos atrás, o relógio chegou ao ponto mais próximo desde que o Relógio foi acertado após os atentados atômicos. Em janeiro passado, os analistas abandonaram completamente os minutos e passaram para segundos: 100 segundos para meia-noite. Eles reiteraram as principais preocupações: guerra nuclear, destruição ambiental e deterioração da democracia, a última delas porque a única esperança de lidar com as duas crises existenciais é uma democracia vibrante, na qual uma população informada está diretamente envolvida na determinação do destino do mundo.

Desde janeiro, Trump elevou a probabilidade cada uma dessas ameaças à sobrevivência. Ele continuou seu projeto de desmontar o regime de controle de armas que dava alguma proteção contra desastres nucleares. Até agora este ano, ele encerrou o Tratado de Céus Abertos, proposto por Eisenhower, e impôs condições frívolas para impedir a renegociação do New Start, o último pilar do sistema. Ele agora está considerando encerrar a moratória dos testes nucleares, “um convite para que outros países com armas nucleares sigam o exemplo”, disse Daryl Kimball, diretor executivo da Associação de Controle de Armas.

A indústria militar mal consegue controlar sua euforia com a enxurrada de presentes do público para desenvolver novas armas para destruir todos nós, incentivando os adversários a fazerem o mesmo para que, no futuro, novas doações fluam para tentar combater as novas ameaças à sobrevivência. Uma tarefa sem fim, como praticamente todo especialista sabe, mas isso não é pertinente; o que importa é que a generosidade pública flua para os bolsos certos.

Trump também continuou sua campanha dedicada a destruir o meio ambiente que sustenta a vida humana. Sua proposta de orçamento para o ano fiscal de 2020, emitida com a pandemia em andamento, pedia um corte adicional de recursos para os Centros de Controle e Prevenção de Doenças e outros componentes do governo relacionados à saúde, compensados pelo aumento do apoio às indústrias de combustíveis fósseis que estão destruindo as perspectivas de sobrevivência.

E, como sempre, mais financiamento para os militares e para o muro [de fronteira], que é uma parte central de sua estratégia eleitoral. Os líderes corporativos, que Trump instalou para supervisionar a destruição ambiental, estão silenciosamente eliminando regulamentos que restringem um pouco os danos e que protegem a população de envenenamento do suprimento de água e do ar que respiram. O último revela nitidamente a malevolência do fenômeno Trump. Em meio a uma pandemia respiratória sem precedentes, os subordinados de Trump estão tentando aumentar a poluição do ar, o que torna a COVID-19 mais mortal, colocando em risco dezenas de milhares de norte-americanos. Mas isso não importa muito. A maioria não tem escolha a não ser morar perto das fábricas poluidoras – [aqueles] que são pobres e negros, e que votam do jeito “errado”.

Novamente, existem beneficiários: seus principais apoiadores da riqueza privada e do poder corporativo.

Voltando à terceira preocupação dos analistas do Doomsday Clock, Trump acelerou seu programa para desmontar a democracia americana. O ramo executivo foi praticamente destruído, convertido em uma coleção de bajuladores covardes que não se atrevem a ofender o mestre. Seu último passo foi demitir o promotor do Estado de Nova York que estava investigando o pântano que Trump criou em Washington. Ele estava levando adiante a investigação dos inspetores gerais que Trump expurgou quando estavam chegando muito perto. O próximo passo projetado, que acabamos de saber, é um expurgo do comando militar, para garantir obediência fiel ao aspirante a ditador barato no caso de uma crise internacional ou doméstica de sua autoria.

Trump é imitado de perto por Jair Bolsonaro; farsa imitando tragédia. Mas no Brasil, ainda existe uma pequena barreira à criminalidade executiva: a Suprema Corte, que bloqueou as ações de Bolsonaro para expurgar as autoridades que investigam seu próprio pântano. Os EUA estão bem atrás.

É uma conquista e tanto, em apenas seis meses ter elevado significativamente todas as três ameaças à sobrevivência que levaram o Doomsday Clock em direção à meia-noite, ao mesmo tempo em que falhou espetacularmente no trato com a pandemia. Sob a liderança de Trump, os EUA, com 4% da população mundial, já registraram 20% dos casos da [COVID-19]. De acordo com um estudo em uma importante revista médica, quase todos os casos podem ser atribuídos à recusa de Trump e associados em respeitar os conselhos dos cientistas.

No final de março, os EUA e a UE tinham o mesmo número de casos de infecções. A Europa adotou os resultados dos estudos científicos dos EUA e os casos diminuíram muito acentuadamente. Sob Trump, os casos aumentaram para mais de cinco vezes o nível da UE. Pesquisadores europeus estão se perguntando se os EUA desistiram. A Europa está agora considerando uma proibição de viajantes do estado pária que Trump e associados estão construindo.

A ideia de que o governo dos EUA desistiu está enganada. Uma conclusão mais precisa é que os governantes simplesmente não se importam. A preocupação deles é manter o poder e moldar a sociedade futura à sua imagem. O destino da população em geral não é da conta deles.

A tarefa de forjar o mundo futuro não está nas diretivas federais emitidas pelo executivo. Essa é, agora, praticamente a única preocupação do Senado, com uma maioria republicana que talvez seja ainda mais subserviente ao mestre do que ao executivo. O Senado de Mitch McConnell praticamente abandonou qualquer pretensão de ser um órgão deliberativo ou legislativo. Sua tarefa é servir à riqueza e ao poder corporativo, ao mesmo tempo em que entope o judiciário, de cima a baixo, com jovens produtos da Federalist Society, de ultra-direita, que serão capazes de proteger a agenda reacionária de Trump-McConnell por muitos anos do que quer que o povo deseje.

O mais recente esforço republicano para punir a população é apelar à Suprema Corte para que encerre o “Obamacare” ( a Lei de Assistência Acessível) – como sempre, oferecendo nada em seu lugar além de promessas vazias.

A malevolência Trumpiana está trazendo à luz malignidades muito mais profundas da ordem socioeconômica, que não podem ser ignoradas se quisermos evitar a próxima e provavelmente pior pandemia, ou lidar com as ameaças verdadeiramente existenciais à sobrevivência que Trump está trabalhando duro para tornar muito mais graves.

Essas são as perguntas que enfrentamos quando nos perguntamos o que podemos fazer para moldar o momento que emergirmos da atual crise de saúde.

Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Chomsky-Nao-podemos-deixar-que-os-mestres-do-capital-definam-o-mundo-pos-Covid/4/48007

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