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Covid: a saída nas mãos de indústrias sem ética

Em meio à pandemia, cresce a ansiedade por uma resposta da Ciência. Pode ser ilusão. Fraudes, subornos e sabotagens mostram a pesquisa sequestrada por corporações cuja lógica é o lucro máximo – inclusive às custas da Saúde

Por Maurício Abdalla


TÍTULO ORIGINAL:
A pandemia de 2020, a Ciência e a indústria de Biotecnologia

Ciência, poder e mercado

No século XVII, o desejo por uma sociedade regida pelas leis do mercado compunha o ideal revolucionário da burguesia europeia, cujo poder vinha crescendo cada vez mais no interior do sistema feudal em crise. Acreditava-se que as relações sociais guiadas unicamente pelas regras mercantis possuíam um potencial libertário, capaz de construir o reino da liberdade em contraposição ao domínio fundado na hierarquia social.

Para que esse desejo se tornasse realizável, era preciso substituir a cosmovisão naturalista baseada na física e metafísica aristotélicas, que sustentava a ordem feudal no plano intelectual, por um saber que reproduzisse na subjetividade social as relações de mercado que já se estabeleciam objetivamente na história. O estudo do mundo por meio da nova filosofia natural cultivada na Renascença possuía um caráter de ruptura com toda a tradição de conhecimento (amparada no aristotelismo cristão) que naturalizava e dava suporte teórico às relações feudais. O nexo entre conhecimento e poder caracterizava-se, naquela época, por esse contexto socioeconômico.

O desenvolvimento da ciência moderna, em suas origens, estava profundamente relacionado à ideia de um conhecimento libertador, em contraposição ao saber submetido aos interesses das castas feudais dominantes. Enquanto o apego à física aristotélica relacionava-se à postura conservadora, refratária às mudanças na ordem social e econômica, a defesa de uma nova filosofia natural (que hoje chamamos de ciência) compunha o ideal revolucionário, que em alguns países, como a Inglaterra, já estava em vias de concretização.

Foi nesse contexto que o filósofo inglês Francis Bacon, considerado o “profeta da ciência moderna”, vislumbrou na ciência um instrumento para um novo poder. “Conhecimento e poder humano são sinônimos”, escreveu o filósofo no terceiro aforismo de sua obra Novum Organum, de 1620, acrescentando, no aforismo 129, que “Agora o império do homem sobre as coisas está fundado unicamente nas artes e na ciência, pois a natureza só é dominada obedecendo-a”.1

A tese baconiana de que o poder decorre do saber e de que a ciência e sua aplicação são os fundamentos últimos e únicos do domínio humano sobre o mundo passou a compor a concepção moderna de ciência. O saber científico ainda tem sido visto como a luz que deve guiar os seres humanos em suas decisões cotidianas (individuais e sociais), como vislumbrado por Bacon em sua utopia da Nova Atlântida.2

Bacon acreditava em uma ciência sem sujeito. Para ele, a verdadeira ciência seria aquela na qual todos os elementos subjetivos do pesquisador, relacionados à vida social e econômica, interesses, concepções, crenças, linguagem etc. – que ele chamou de ídolos – seriam eliminados para dar lugar à fala neutra e direta da natureza. Seus agentes seriam capazes de se purificar totalmente dos ídolos e de usar um método infalível baseado na observação e indução. Do esforço desse grupo quase sacerdotal de pessoas purificadas e livres das influências do contexto socioeconômico e cultural adviriam as verdades naturais às quais o poder deveria submeter-se.

A visão baconiana ainda compõe a ideia popular sobre a ciência. A sociedade ainda a concebe como o resultado da prática de cientistas desinteressados e sem vida social – representados na imagem mítica do “cientista louco” de cabelos desgrenhados –, que realizam seus trabalhos em laboratórios próprios ou em universidades livres, sem financiamento ou direcionamento de resultados. O poder do qual gozam as decisões supostamente embasadas na ciência e o controle que todo discurso cientificamente construído exerce sobre nossas vidas amparam-se nessa visão idílica sobre a prática científica.

Entretanto, no mundo real, a história revelou-se bem diferente. Tão logo as regras do mercado e a classe social que as manipulam tornaram-se hegemônicas na sociedade ocidental, a ciência foi perdendo sua característica de conhecimento desbravador da natureza e de saber vinculado a um ideal libertário de poder para reduzir-se a força produtiva, capaz de multiplicar os lucros das empresas e ampliar a capacidade da indústria para transformar os elementos naturais em produtos comercializáveis.

Embora a ciência teórica ainda guarde a dimensão original do saber científico como forma de conhecimento sobre a natureza – e talvez por isso seja cada vez mais desprestigiada –, a ciência aplicada e sua conversão em tecnologia confundiu-se com o próprio conceito de ciência.

O ideal baconiano revelou-se um mito tanto pelas razões teóricas trazidas pela filosofia da ciência do século XXquanto pelo desenvolvimento real do mundo. O que podemos afirmar, afastados do contexto em que Bacon elaborou suas ideias, é que não existe saber sem sujeito e não há sujeito que não seja determinado pelas relações socioeconômicas e culturais que o envolvem. Tampouco existe ciência fora de um contexto socioeconômico, sem local ou recursos, nem laboratórios que não demandem volumosos investimentos financeiros para custear os gastos que a ciência avançada necessita para sua consecução.

Sabemos também que as relações reais de poder no capitalismo são determinadas pelo dinheiro. Consequentemente, uma vez que os possuidores do dinheiro são os que detêm o poder real no mundo capitalista, o saber da ciência, principalmente em sua dimensão pragmática, revelou-se profundamente dependente do poder econômico. Mesmo quando pensamos em investimentos públicos em pesquisa, devemos ter em mente o controle que as grandes corporações privadas exercem cada vez mais sobre a gestão dos Estados e de seus orçamentos – o que nos leva à conclusão sobre a primazia do poder sobre o saber.

Atualmente, não há investimento em ciência sem interesses mercantis. Os casos de bilionários que doam recursos à ciência por meio de suas instituições sociais são exceções, muito pouco frequentes para serem usadas como contraexemplo à ideia da relação entre o financiamento da ciência e os interesses do mercado. Ademais, a ciência que se faz com as doações de fundações também se insere em um conjunto de outros interesses que envolvem cientistas e instituições que recebem esses recursos.

No mundo real, portanto, ao contrário da tese baconiana, o saber é decorrente do poder, justamente pelo fato de que a dimensão pragmática da ciência necessita de recursos e, ao mesmo tempo, seus resultados são direcionados e apropriados pelos interesses mercantis que os financiam.

Poderíamos exemplificar as afirmações acima com incontáveis exemplos. Por razões de brevidade, tomemos apenas o caso conhecido como o “affair Séralini” como ilustração mais recente. Ao refletir sobre esse episódio de intervenção direta da indústria de biotecnologia na prática, conclusões e publicações científicas, Fagan, Traavik & Bøhn afirmam:

Ao contribuir para o avanço do bem estar da humanidade, a ciência tem sido a galinha que pôs muitos ovos de ouro de grande proveito para o setor empresarial. Porém, quando os resultados das pesquisas não estão em sintonia com as prioridades comerciais de curto prazo, não parece hav­er qualquer hesitação para tentarem interferir nos processos científicos e manipulá-los.3

As regras do mercado são fundadas na maximização dos lucros e na quantificação de toda a realidade. Os mecanismos reais que possibilitam a obtenção de lucro (comércio, indústria, serviços, atividade bancária, agricultura, pecuária etc.) são apenas meios necessários para a obtenção de um único o fim: a reprodução do capital. Como simples mediações, eles perdem toda sua concreticidade real e se tornam meios abstratos direcionados a resultados monetários. Não há outra ética no julgamento da manipulação dos meios que geram lucro que não seja a que se rege pelo único princípio: se dá lucro é bom, se dá prejuízo é mau. “Bem“ e “mal” tornam-se conceitos subsumidos à ideia geral de mercado como princípio absoluto.

Quando as mediações para a produção de riqueza monetária estão diretamente relacionadas ao equilíbrio da natureza e à saúde e sobrevivência do ser humano, as consequências da utilização da ciência na prática industrial pautada apenas na ética do mercado são enormes. Pois, quando a natureza e o mundo microbiológico são transformados em meios abstratos quantitativamente concebidos em sua potencialidade comercial, os diversos efeitos concretos de sua manipulação não entram nos cálculos e planejamento de metas das corporações. Importa apenas o seu potencial de geração de lucros para os acionistas anônimos – para os quais pouco importa o que realmente fazem as empresas nas quais investem: elas são apenas números e gráficos no mercado de ações.

É justamente nesse campo que se insere a reflexão mais importante sobre a ciência como força produtiva e seu papel no desenvolvimento da sociedade.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/covid-19-a-saida-nas-maos-de-industrias-sem-etica/

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