O país retrocedeu e está prostrado, mas a crença na “mercantilização eficiente” o inebria e impede de enxergar a si mesmo. Que fatos estão ocultos por esta operação ideológica? Que interesses poderosos permitem que ela esconda o Real?
Por Ladislau Dowbor
Todos temos um pouco de raízes nas visões de Celso Furtado. Além das leituras, tive a oportunidade de cobrir pelo Jornal do Comércio de Recife uma reunião da Sudene, em 1963, em que Celso Furtado pedia aos governadores que resolvessem na própria reunião o andamento de alguns projetos. Frente à resposta de um dos governadores de que seria preciso dar um prazo para “as devidas considerações”, Celso respondeu secamente que também poderia tomar tempo para as “devidas considerações” quando recebe pedidos dos governadores. Faceta de um realizador frente aos marasmos políticos.
Celso Furtado nos permitia focar problemas estruturais da sociedade. Queria na presente nota trazer o problema da subutilização de fatores de produção no Brasil, tema que envolve tanto a economia como a política, e tem tudo a ver com a dimensão estrutural dos nossos dramas.
A subutilização da mão de obra
A realidade é chocante: neste país de 212 milhões de habitantes, o emprego formal privado se resume a 33 milhões de pessoas. Somando 11 milhões de funcionários públicos, são 44 milhões, apenas 42% da força de trabalho de 105 milhões. A subutilização da força de trabalho constitui uma dimensão particularmente gritante da nossa fragilidade econômica, pois se trata, para além do drama social, de uma enorme insensatez econômica. A Síntese de Indicadores Sociais 2019 do IBGE traz uma seção sobre essa questão.
Como ordem de grandeza, temos 40 milhões de pessoas no setor informal. Segundo o IBGE, a renda desses trabalhadores é a metade da renda que o trabalhador formal aufere. São pessoas que no essencial “se viram”. Ser empreendedor individual sem dúvida frequentemente assegura uma aparência mais digna à subutilização, mas vemos na própria uberização e terceirizações irresponsáveis o que isso pode significar. E temos 13 milhões de pessoas formalmente desempregadas. Somando os 40 milhões do setor informal e os 13 milhões de desempregados, são 53 milhões, a metade da força de trabalho. A esse contingente precisamos acrescentar o imenso desalento, pessoas que estão em idade de trabalho, mas desistiram de procurar, e ainda as pessoas classificadas como empregadas, mas que trabalham apenas algumas horas.
No conjunto, a subutilização da força de trabalho, num país onde há tantas coisas por fazer, é absolutamente chocante. Em cada um dos 5.570 municípios do país, temos por exemplo pessoas desempregadas e terra parada. Não é complicado pensar que se possa organizar um cinturão verde hortifrutigranjeiro em torno de cada um, simplesmente articulando os fatores de produção parados. Em Santos, no tempo de David Capistrano, acompanhei o projeto em que os desempregados da cidade foram cadastrados e organizados na Operação Praia Limpa, que permitiu realizar as obras de saneamento, tirando os esgotos dos canais pluviais, o que recuperou a balneabilidade das praias, e em consequência o turismo, a atividade hoteleira e semelhantes, transformando uma operação temporária em empregos permanentes. Exemplos não faltam, planejamento econômico e social consiste em boa parte em articular fatores subutilizados.
Um argumento ideológico sempre buscou justificar a desigualdade com a falta de iniciativa dos pobres: o pobre não precisa que lhe ensinem disposição para trabalhar, precisa de oportunidades. Isso envolve planejamento e iniciativas públicas, em vez de discursos ideológicos.
A subutilização da terra
O censo agropecuário de 2017 nos dá outra dimensão da subutilização dos fatores. O Brasil é imenso. Os 8,5 milhões de quilômetros quadrados correspondem a 850 milhões de hectares. Segundo o censo, 353 milhões de hectares constituem estabelecimentos agrícolas. Nesses, 225 milhões de hectares constituem solo agricultável, portanto disponível para atividades produtivas, tanto pela qualidade do solo como pela disponibilidade de água. O que choca, é que somando a agricultura permanente e temporária, o uso produtivo no sentido pleno ocupa 63 milhões de hectares. Arredondando, temos 160 milhões de hectares de solo agrícola parado ou subutilizado. Essa área representa 5 vezes o território da Itália. Precisamos desmatar a Amazônia?
Grande parte dessa terra parada ou subutilizada é ocupada pela pecuária extensiva. O limite entre terra produtiva e improdutiva gerou um amplo debate devido à pressão secular pela reforma agrária no país. Usar imensas regiões com quase um hectare por cabeça de gado gera sem dúvida fortunas para os conglomerados agroexportadores de carne, mas para quem conhece formas modernas de criação de gado semi-confinado, com as unidades de pecuária plantando forragem, o desperdício torna-se evidente. Numa imensa parte do Brasil, o solo constitui apenas a base para um rentismo improdutivo. A pecuária extensiva gera pouquíssimo emprego, poucos impostos, e está articulada com os grandes traders de commodities agropecuárias.
Um resgate do ITR, Imposto Territorial Rural, que no Brasil constitui uma ficção, permitiria sem dúvida estimular a produtividade: como na Europa e em outras regiões, o fato de pagarem impostos sobre terra parada estimula os proprietários a utilizá-la de maneira mais produtiva, ou vendê-la para quem produza. Em particular, é preciso tributar o rentismo, em que se valorizam terras com a simples expansão de infraestruturas e da urbanização. Em Imperatriz do Maranhão, mais de 80% dos produtos nas gôndolas dos supermercados vêm de São Paulo, enquanto em volta da cidade dormem imensas extensões de terra parada, que se valoriza passivamente com a expansão urbana. Estamos esperando que “os mercados” resolvam?
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/dowbor-cinco-fatores-de-nossa-miseria/
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