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Dowbor: potência e miséria da Economia do Conhecimento

O que se chama de “Quarta Revolução Industrial” talvez seja a virada para um novo modo de produção. Seu sentido está em disputa. Ele pode assegurar vida digna para todos. Mas, dominado pelo 0,1%, produz superexploração e desigualdade

Por Ladislau Dowbor

Vimos até aqui a mudança profunda no conteúdo dos processos produtivos. Naturalmente, continuamos a produzir trigo e arroz, aço e automóveis, mas o elemento básico de formação do valor, o fator principal de produção, é constituído por um conjunto de atividades intangíveis que podem ser generalizadas sem custos adicionais significativos. Quando surgiu a indústria, a agricultura não desapareceu, inclusive porque sua intensificação seria necessária para fornecer alimentos às cidades e matérias-primas às fábricas. Mas o eixo dominante de estruturação social passou a ser a indústria, levando à transformação da própria agricultura. Com a emergência do conhecimento e dos intangíveis no sentido amplo, a indústria e a agricultura expandem a sua capacidade produtiva, justamente, pela incorporação do conjunto dos avanços intangíveis que passam a dominar as transformações. Mas quem assume o comando já não é mais necessariamente quem controla as suas máquinas.

Tal como a lógica da acumulação industrial passou a dominar o conjunto das relações sociais de produção na segunda metade do século XIX e no século XX, hoje a dinâmica estruturante da sociedade passa a ser o acesso à informação e ao controle do conhe-cimento no sentido amplo. André Gorz, no seu estudo Oimaterial, resume logo nas primeiras linhas a dimensão do deslocamento:

A ampla admissão do conhecimento como a principal força produtiva provocou uma mudança que compromete a validade das categoriaseconômicas-chave e indica a necessidade de estabelecimento de uma outra economia.A economia do conhecimento que atualmente se propaga é uma forma de capitalismo que procura redefinir suas categorias principais – trabalho, valor e capital – e assim abarcar novos domínios1.

Controlar o conhecimento significa controlar o principal fator de produção da sociedade. Ignacy Sachs resumiu bem a ideia: no século passado, o poder era de quem controlava as fábricas; neste século vai ser de quem controla a informação. Tal como a lógica de organização social muda com a transição da era agrícola para a era industrial, enfrentamos uma profunda mudança sistêmica com a centralidade da era da informação. Esse ângulo de análise nos parece bem mais esclarecedor das dinâmicas aceleradas de mudança que vivemos do que imaginar que se trata de uma Quarta Revolução Industrial. As bases técnicas dos processos produtivos se deslocaram, vamos ver agora os impactos sobre o conjunto das relações sociais de produção.

Da concorrência de mercado à organização interempresarial

No caso do universo industrial, a tendência para o gigantismo sempre foi forte, na medida em que poder repartir, em mais unidades produzidas, os custos fixos – como máquinas e equipamentos – assegurava as chamadas economias de escala, como no caso emblemático da General Motors e em tantos outros. A lógica aqui é de um grande produtor de um determinado produto: quando falamos de um carro da GM sabemos do que e de quem se trata. Os gigantes empresariais apresentados na Figura 3 detêm ativos muito mais elevados do que o PIB da maioria dos países; além disso, eles têm em comum o fato de constituírem redes de controle de inúmeras atividades, através de controle acionário. A Berkshire Hathaway, de Warren Buffett, que ocupa a sétima posição, já foi uma empresa do ramo têxtil, mas hoje é essencial- mente uma holding financeira que controla e extrai dividendos de transporte ferroviário, enciclopédias, meios de comunicação, aspiradores, joias, eletricidade, gás e outros setores, em particular o de seguros. Cruza com interesses do Goldman Sachs e tem Bill Gates, um dos fundadores da Microsoft, como segundo maior acionista. Estamos em família. A Alphabet é a controladora do Google, a Tencent é um gigante chinês de tecnologia e jogos.

Fonte: Holger Zschaepitz apud Rupert Neate, “Apple Leads Race to Become World’s First $1tn Company”, em: The Guardian, 3 jan. 2018,

As cinco maiores corporações do mundo valem no conjunto US$3,35 trilhões – mais do que o PIB do Reino Unido ou de qualquer outro país do mundo com exceção de Estados Unidos, China, Japão e Alemanha. O imenso aumento de valor sobreveio depois que os mercados de ações chegaram ao fim de 2017 com altas recordes, quando os preços das ações se beneficiaram dos cortes de impostos do presidente Donald Trump e da continuação da flexibilização quantitativa [quantitative easing] dos bancos centrais2.

Ou seja, são gigantes, mas o gigantismo consiste essencialmente na rede de controle que lhes permite extrair dividendos. Se qualquer uma fosse vender suas máquinas e instalações, não recolheria grande coisa. O seu valor é essencialmente imaterial e consiste na capacidade sistêmica de extrair dividendos. As eventuais fábricas controladas são meras terceirizadas, e o conjunto forma uma arquitetura de interesses profundamente diferente do tradicional sistema empresarial. O valor dessas corporações, inclusive, é calculado pelo valor de suas ações no mercado, que, por sua vez, depende dos dividendos pagos aos acionistas. Os ativos da nova economia, no topo da pirâmide, são essencialmente imateriais. Que base material se venderia com o Facebook?

A transformação foi acompanhada de um curioso deslocamento do conceito de mercado. Tal como foi desenvolvido nos clássicos da economia, o conceito se referia à livre troca de bens e serviços que permitiria que se estabelecesse naturalmente o equilíbrio entre preços e quantidades, no contexto de inúmeras empresas, sem que nenhuma pudesse dominar o processo e deformá-lo. Isso sem dúvida ainda existe, por exemplo, no mercado de camisetas e semelhantes, assegurando que a população enquanto consumidora possa exercer um certo papel, na linha do que Milton Friedman chamava de “liberdade para escolher”. Mas hoje, quando nos referimos aos “mercado”, temos em mente um grupo de grandes intermediários financeiros que estão observando o rendimento das suas ações e de outras aplicações financeiras.

A gigante Tencent, multinacional de base chinesa que aparece logo após o Facebook na Figura 3, dá uma boa ideia de uma corporação moderna. Em uma simples consulta na Wikipédia, é possível saber que esse grupo controla atividades relativas a comércio eletrônico, jogos de videogame, softwares, realidade virtual, compartilhamento de transporte, atividades bancárias, serviços financeiros, fintech, tecnologia de consumo, informática, indústria automobilística, produção e distribuição audiovisual, venda online de ingressos, música, tecnologia espacial, recursos naturais, smartphonesbigdata, agricultura, serviços médicos, computação em nuvem, mídia social, e-books, serviços de internet, educação, energia renovável, inteligência artificial, robótica, entrega de alimentos e outros. Pode atuar em qualquer setor, em qualquer país, em atividades cruzadas com inúmeras companhias, que vão desde a plataforma estadunidense de compartilhamento de vídeos YouTube até a empresa francesa de cosméticos L’Oréal. É pouco provável que você tenha ouvido falar da Tencent, e, no entanto, seguramente, em alguma das suas atividades de compra você alimenta os controladores dessa empresa3.

Fonte: Convergence Alimentaire apud Harry Bradford, “These 10 Companies Control Enormous Number Of Consumer Brands”, em: HuffPost, 27 abr. 2012.

O mundo mudou radicalmente e está mudando ainda mais, e de forma acelerada. Conhecemos os produtos finais que aparecem nas gôndolas dos supermercados, mas saber a quem pertencem, quem os controla, qual é a política adotada em termos ambientais, sociais oude simples segurança do consumidor está evidentemente fora do nosso alcance. Os grupos centrais da Figura 4 constituem holdingsfinanceiras que controlam outras instituições financeiras dispersas em vários setores e vários países, que, por sua vez, controlam empresas realmente produtoras de alguma coisa que se consome. Nomes de referência como Nestlé são mantidos apenas pelo elevado investimento feito durante décadas para associar a marca a imagens positivas. No topo decidem gestores financeiros que pouco entendem das esferas produtivas; e nem poderiam entender, considerando a diversidade de produtos, setores e países de atividade. De um mundo de livre concorrência de mercado, nós passamos a gigantescas pirâmides de poder financeiro que constituem sistemas complexos de articulação. Na ausência de qualquer sistema de governança política global, o sistema econômico global está constituindo a sua própria rede de poder. “A política mudou de lugar”, na excelente formulação que herdamos de Octavio Ianni.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/dowbor-potencia-e-miseria-da-economia-imaterial/

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