Valter Roberto Silvério, professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos, diz que concluiu cedo em sua carreira que a perspectiva racial na academia era colocada em segundo plano. “O movimento negro nos permitiu ter uma visão desde cedo de que havia uma história subterrânea que não estava nos currículos”, diz ele, décadas depois.
Luiza Franco
Silvério estuda como movimentos negros em diversos países se articularam e se uniram desde o final do século 19 e faz parte de um grupo de pesquisadores que se dedica a contar a história da tradição intelectual negra internacional. “Não é um autor nem um texto nem um tema. É uma história inteira e ela não foi considerada”, diz ele. “O principal problema não é que as pessoas brancas não sejam sensíveis ao problema racial, (é que) elas não têm formação para entender isso de forma adequada. Por isso, uma reformulação curricular é urgente”.
Tendo estudado a história dos movimentos negros pelo mundo, Silvério acha que os protestos contra o racismo que irromperam em várias cidades nas últimas semanas são sem precedentes e podem inaugurar uma nova era. “Parece que uma parte da juventude branca entendeu que a sociedade gera privilégios para ela. E quando ela sai às ruas com os jovens negros se vê outra configuração de luta”, avalia.
No Brasil, os protestos contra o racismo se deram em meio a manifestações contra o governo do presidente Jair Bolsonaro. Ao mesmo tempo, surgem propostas formação de uma frente ampla de pessoas de diferentes visões ideológicas, uma nova versão do movimento Diretas Já, de 1984, contra a ditadura militar.
Silvério dá boas-vindas a isso, mas faz ressalvas: “as bases disso não podem ser com os pressupostos de 1984 — homens brancos que estão sempre na mídia, que são sempre os mesmos, chamando para a criação da frente. É desconhecer que há movimentos novos importantes, com lideranças novas, e que a questão, por exemplo, da bandeira do antirracismo, que eu prefiro chamar de antirracialização, é uma bandeira importante e é um elemento de mediação na construção de qualquer frente democrática”, diz ele.
Desde a redemocratização, opina, a questão racial não teve o avanço necessário, inclusive nos governos mais alinhados à esquerda e ao movimento negro.
Veja os principais trechos da entrevista para a BBC News Brasil.
BBC News Brasil – O senhor estuda intelectuais negros e transnacionalismo. Podem explicar o que é sua pesquisa?
Valter Silvério – Tive três estágios importantes no exterior e passei um período nos arquivos da Unesco em Paris levantando documentação para a minha tese, que não é só minha. Sou vice-presidente do comitê científico para os volumes 9, 10 e 11 da coleção História Geral da África (projeto editorial da Unesco). Nos últimos 15 anos tenho pesquisado esse tema. Nas minhas viagens para países africanos, Europa, Estados Unidos, China, consegui coletar um material razoável que estou somando a pesquisas que fiz em outros momentos. Estou tentando articular esse volume desde 2018 e estou escrevendo um livro sobre isso. Espero concluir e lançá-lo neste ano.
É uma tentativa de reconstruir e construir novas referências de como a história da sociologia e política lidaram com a questão racial. Há autores e autoras e marcos importantes — formação da Liga das Nações, os congressos panafricanos, a formação da ONU, a definição da Unesco de criar histórias setoriais ou continentais, a participação do Abdias do Nascimento (intelectual e referência do movimento negro brasileiro) no primeiro festival de cultura negra.
São marcos construídos por agência política criativa de intelectuais negros e negras e eles escreveram muito sobre esses marcos, registraram de forma acadêmica esses eventos, então tem muita literatura, ainda muito desconhecida no Brasil mas já conhecida nos EUA e Inglaterra.
Eles ganharam novos leitores a partir de estudos pós-coloniais. Há um resgate desses escritos que me parece que vai formar uma base importante para uma crítica aos clássicos da sociologia, história, ciência política. Achei que isso demoraria algumas décadas, mas me parece que os jovens estão mais insatisfeitos do que eu em termos do que recebem como conteúdo em suas formações.
Claro que há uma juventude que não está interessada nesses conteúdos, mas acho que (para) um acadêmico da área de ciências humanas é assustador desconhecer essa tradição de pensamento que tem muita coisa escrita. Não é um autor nem um texto nem um tema. É uma história inteira e ela não foi considerada.
BBC News Brasil – Como o senhor viu os atos antirracismo que aconteceram no Brasil nos últimos fins de semana?
Silvério – Vejo de forma emocional. Fico emocionado de ver que a juventude entende que o mundo não pode continuar dessa maneira. Quando saem à rua em meio à pandemia estão dizendo que é melhor morrer do que continuar nessa situação.
Parece que uma parte da juventude branca entendeu que a sociedade gera privilégios para ela. E quando ela sai às ruas com os jovens negros se vê outra configuração de luta. Essa configuração de luta se dá na chave de valores. No Brasil, temos o mito da democracia racial, e preto se confunde com pobre. Sempre há um acadêmico que faz uma análise e econômica e não racial. Não se quer enfrentar quais são as bases da pobreza no Brasil, que são a questão racial e o racismo. Não é que esses jovens não vejam que existe um problema econômico, mas estão exigindo mudanças de valores. Essa chave contra a racialização, contra políticas públicas racializadas, contra uma percepção midiática racializada abre um horizonte novo de perspectivas no que pode vir a ser o mundo pós-pandemia.
Hoje todos são antirracistas — a imprensa, políticos, a universidade —, mas as práticas cotidianas dessas profissões são atravessadas pela racialização. No Brasil, não vi as redes chamando por exemplo a professora Petronilha Gonçalves (professora emérita da Universidade Federal de São Carlos que estuda relações étnico-raciais) para discutir o que está acontecendo. Chamam pessoas que estão falando sobre um momento. A mídia faz isso porque desconhece essa história, essas pessoas. O buraco é mais embaixo, e está muito bem cavado. Há uma mudança importante na forma de agência política, ela deixa de ser nacional e se transforma em transnacional, mas as questões nacionais vão aparecer, especialmente em relação ao protagonismo. Mas me parece que é uma nova configuração mundial em termos de luta.
O que acho que vai ocorrer imediatamente é que os partidários da classe social vão criar discurso de que é um problema do capitalismo e não de valores sociais. Me parece que jovens estão colocando, diferentemente de outros momentos, que querem valores que reconheçam que o fato de você ser diferente do ponto de vista de cor, raça e sexualidade não significa que não deve receber tratamento igual. A agenda que vem a seguir vai tentar atravessar essa mobilização com o movimento da desigualdade econômica. Mas me parece que a juventude está compreendendo que o que está na base dos problemas são questões de valores e não econômicas.
Saiba mais em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53031445
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