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“Nossos movimentos sociais vão conquistar de volta a democracia”

Exilado na Argentina, ex-presidente golpeado Evo Morales contou à Jacobin sobre a sua história na luta anti-imperialista, os meandros que motivaram o golpe militar ano passado em conluio com os EUA e porque o partido MAS está preparado para vencer as eleições presidenciais deste mês.

Uma entrevista com Evo Morales Ayma / Tradução Ádamo da Veiga / Foto de Ariel Feldman.

Odestino de Evo Morales após o golpe militar no ano passado na Bolívia segue o mesmo padrão persecutório que o de muitos líderes de esquerda, progressistas e anti-imperialistas, na região. Paralelos foram feitos com o golpe contra o Chile de Salvador Allende em setembro de 1973, com a tentativa de levante militar contra Hugo Chavez na Venezuela em 2002 e  com a tentativa da polícia equatoriana de derrubar Rafael Correa em 2010.

Com Morales exilado na Argentina, ele também tem sido comparado a um dos maiores lideres deste país, Juan Domingo Perón, após a tomada de poder por uma facção ultraconservadora do exército em 1955. A ditadura militar implementou um banimento total do movimento peronista, mas, ainda assim, o exilado Perón continuou a ter enorme influência devido a base que ele havia construído durante a década de mudança social radical e de política externa independente que ele perseguiu durante a sua presidência. Apesar do seu nome ter sido banido, o movimento peronista manteve-se ativo, e após a vitória eleitoral do seu candidato Héctor Cámpora em março de 1973, Perón finalmente foi autorizado a retornar.

Hoje, Evo Morales e o Movimento ao Socialismo (MAS) encontram-se em uma situação bastante similar. O período desde o golpe militar ano passado tem sido marcado por repressão, por massacres de dúzias de sindicalistas e ativistas indígenas, e por tentativas de banir o MAS das eleições presidenciais, atualmente marcadas para 18 de outubro. Isto tudo combinado com uma campanha midiática em curso, de manipulação e fake news, desenhada para manchar 14 anos de governo socialista.

Apesar disto, o MAS permanece sendo a força política mais forte na Bolívia, com as últimas pesquisas indicando que Luis Arce Catacora e David Choquehuanca devem vencer a eleição no primeiro turno com 44,4% dos votos – deste modo, atingindo a margem de 10% necessária sobre o candidato em segundo lugar, Carlos Mesa, também perdedor nas eleições de outubro de 2019. Ainda assim, uma disputa livre e justa parece crescentemente improvável, dada as contínuas interferências da Organização dos Estados Americanos (OEA) e do seu secretário, Luis Almagro.

Antes da data planejada para eleição, Denis Rogatyuk e Bruno Sommer, jornalistas da Jacobin, sentaram-se com o ex-presidente golpeado Evo Morales para discutir a sua história como sindicalista e chefe de Estado, a sua experiência durante golpe e o que o MAS pode fazer se e quando retornar para o governo.


BS

Durante a Guerra da Água de Cochabamba de 1999-2000 – uma revolta massiva contra a privatização da água – você era o líder sindicalista resistindo ao governo neoliberal de Jorge “Tuto” Quiroga. Como você pode comparar a luta destes anos com a atual resistência nos trópicos de Cochabamba?

EM

Para começar, vale a pena mencionar o grupo de jovens camponeses e lideres indígenas, ativos desde o final dos anos de 1980 e início dos anos 90 do qual eu era parte. Nós nos perguntávamos – por quanto tempo seremos governados de cima e de fora? Por quanto tempo nossos planos e políticas continuariam vindo do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial? E, quando os bolivianos vão governar a si mesmos?

A Bolívia sempre teve formas de poder social, poder sindical, poder comunal, vindos de baixo. Mas, quando nós nos perguntávamos como nós poderíamos nacionalizar nossos recursos naturais e melhorar nossos serviços básicos com base neste poder comunal ou social, percebíamos que não poderíamos fazer isso.

Então, era importante promover um instrumento político, sim, com base no movimento camponês dos trópicos, mas, acima de tudo, dos Quéchuas, Aimaras, mais de trinta nacionalidades indígenas. Nós propusemos um instrumento político de libertação do povo, com um programa para o povo.

Neste ponto, nós tivemos que romper com o sistema capitalista. Neste sistema, os movimentos sociais são chamados de “terroristas” e os sindicados não são feitos para estarem envolvidos politicamente. Mas nós dissemos que nós temos direitos políticos e que não podemos apenas ser sindicalistas preocupados exclusivamente com demandas trabalhistas. Se nós queremos uma transformação profunda, é importante também produzir transformações nas estruturas do Estado. Em certa medida, nós tivemos problemas com os trabalhadores, que insistiam na “independência sindicalista” e na instância da não-política.

Então, vieram os governos de Hugo Banzer [1997-2001] e Tuto Queiroga [2001-2002]. Eles privatizarem as redes de eletricidade e telecomunicações da Bolívia, enquanto nossos recursos naturais, como o gás, eram entregues às companhias transnacionais. Diversas vezes, eu fui negociar com os líderes nacionais do COB (Central dos Trabalhadores Bolivianos, o principal sindicato federal), assim como com as confederações camponesas e, nas diferentes negociações com os governos neoliberais, nós sempre colocávamos o tópico da nacionalização sobre a mesa. Nossa alegação era a de que, quando o gás estava no subsolo, ele pertencia aos bolivianos, mas quando ele era extraído, ele deixava de ser boliviano. Os contratos inconstitucionais que eram assinados diziam – literalmente – que o dono adquiria o direito à propriedade na boca de poço. E quem era o dono? As companhias transnacionais.

DR

Na eleição presidencial de 2002, você foi derrotado por Gonzalo “Goni” Sánchez de Lozada, depois de uma campanha de mentiras, medo e intimidação contra você e o MAS. Hoje, estamos vendo algo similar. Que lições do presente você tirou desta experiência?

EM

Em 1997, me foi proposto ser candidato à presidência e eu fui alvo de muita difamação por parte do governo de Sánchez Lozada. Eles diziam: “Como pode um traficante de drogas, um assassino, ser presidente?” Então, eu desisti da candidatura. Mas em 2002, havia um consenso de que eu deveria me candidatar. 

Eu duvidava de que eu poderia conseguir uma boa votação: um jornal internacional disse que o MAS poderia conseguir 8%, e todas as pesquisas diziam 3 ou 4%. Sánchez de Lozada aliou-se com o movimento Bolívia Libre (Liberte a Bolívia), movimento que antes, em 1989, havia reunido segmentos da esquerda, dos sociais-democratas; este partido tinha suas bases em ONGs e era usado para receber dinheiro da Europa em particular.

O embaixador norte-americano, José Manuel Roche, disse “Evo Morales é um Bin Laden andino e os plantadores de coca são o Talibã – então, não vote nele”. O povo anti-imperialista da Bolívia reagiu contra isso se perguntando “por que o embaixador norte-americano acusa Evo Morales de ser um Bin Laden andino?” O Presidente Tuto Quiroga teve que permanecer em silêncio; apesar de hoje ele concordar que há interferência na Bolívia por parte da Argentina e de outros países. Eu disse que o Embaixador Roche foi meu melhor gestor de campanha por ter feito estes comentários. E o resultado foi que chegamos a 20%.

Sinceramente, até aquele momento, eu não tinha certeza se algum dia eu poderia ser presidente, mas daquele ponto em diante, eu pensei que poderia ser – e nós tínhamos que nos preparar. Com um grupo de profissionais, nós começamos a desenvolver um programa muito sério e responsável para o Estado, para o povo boliviano.

BS

As Guerras do Gás – uma revolta popular contra a privatização dos hidrocarbonetos em 2003 -2005 – foram um verdadeiro ponto de inflexão, tanto para Bolívia, quanto para você. Foi quando nós vimos o poder das organizações sociais, sobretudo, na cidade de El Alto. Como você compara este momento histórico com hoje – e que papel você acha que este tipo de movimento desempenhará no processo de restauração da soberania popular?

EM

Com estas lutas nós pudemos conseguir algumas vitórias, mas não uma mudança estrutural. Quando eu fui para o Chapare, nos trópicos de Cochabamba, a frente camponesa indígena propôs mudanças maiores nas negociações sobre hidrocarbonetos. Os representantes do governo neoliberal responderam dizendo: “Não, vocês estão fazendo política. Política de vocês é um crime, um pecado. A política dos camponeses nos trópicos é um machado e um facão – ou, na região do Altiplano, a picareta e a pá.”

Então veio a Guerra do Gás, uma luta concentrada na cidade de El Alto. Qual era o problema subjacente? Fora as questões da privatização, nós não conseguíamos entender porque nossos governantes queriam instalar uma usina de GNL [gás natural liquefeito] no território chileno – não,  instalações estatais, mas, privadas – e dali enviar o gás para a Califórnia. Nós estávamos tendo falta de gás, enquanto eles enviariam gás para os EUA – mas por que não primeiro abastecer os bolivianos?

A luta pela nacionalização estava se aprofundando, e lá, o povo de El Alto estava mais unido do que nunca, em um único conselho de bairro. Agora, eles me dizem que há dois, mesmo três conselhos de bairro, uma fraqueza, na minha opinião. Porém, os conselhos de bairro mais combativos e fortes não são apenas patrióticos, mas anti-imperialistas, baseados na irmandade dos Aimaras.

Nós estávamos convencidos de que iríamos superar todos estes problemas através da luta do povo, da luta do povo de El Alto.

Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2020/10/nossos-movimentos-sociais-vao-conquistar-de-volta-a-democracia/

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