Clipping

“O papel da extrema direita é fazer a população oprimida se reestruturar. Nós temos que derrotá-la”

Milton Barbosa, um dos fundadores do Movimento Negro Unificado criado na ditadura militar, diz que mesmo a esquerda demorou a se engajar na luta contra o racismo

Daniela Mercier

Voz do movimento negro no Brasil há exatamente 42 anos, Milton Barbosa (Ribeirão Preto, 1948) ainda não foi ouvido. Escolhido o orador de um manifesto lido para cerca de 2.000 pessoas nas escadarias do Theatro Municipal de São Paulo, em plena ditadura militar, ele denunciou a violência contra a população negra e a discriminação racial, simbolizadas na época pela morte do feirante Robson da Luz, torturado pela polícia por ser suspeito de roubar uma fruta, e pela proibição de entrada de quatro atletas de um time de vôlei em um tradicional clube paulistano. “Os racistas do Clube de Regatas Tietê que se cubram, pois exigimos justiça. Os assassinos de negros que se cuidem, pois a eles também exigiremos justiça!”, proferiu, naquele 7 de julho de 1978. Era, segundo discursou, um dia histórico, que representou um novo passo na luta contra o racismo no Brasil.

O ato de lançamento do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial foi considerado marco por ter sido o primeiro de caráter nacional, com representantes de outros Estados, e pela mudança tática de enfrentamento, indo além dos debates e dos eventos culturais, como os bailes black. Em 1979, o grupo passou a se chamar Movimento Negro Unificado (MNU). “Com ele, inaugurou-se o protesto nas ruas para denunciar o mito da democracia racial, a violência policial e a pobreza da população negra. Essa habilidade política inspirou diversas organizações espalhadas por todo o território brasileiro”, explica a historiadora Gevanilda Santos no livro Relações raciais e desigualdade no Brasil (2009).

Isolado em sua casa em São Paulo em razão da pandemia de coronavírus —”Tenho 72 anos, não posso ficar dando bobeira”, diz—, Barbosa assiste, como em outras tantas vezes, à repetição da história. Casos de abuso policial contra jovens negros motivam repúdio e levam pessoas para as ruas, ao mesmo tempo em que a crise econômica gerada pelo vírus aumenta o desemprego e reforça as desigualdades. Estamos lutando pelas mesmas questões de mais de 40 anos atrás? “Com certeza, porque neste país a violência policial é sistemática”, afirma em entrevista ao EL PAÍS. “Eles [policiais] sempre atuaram meio de forma autônoma, independente, e num Governo de extrema direita ficam ainda mais violentos porque se sentem livres para agir”, diz, sobre o Governo de Jair Bolsonaro. Cita como revoltantes os recentes casos do jovem Guilherme Silva Guedes, de 15 anos, assassinado a tiros após ser levado de madrugada da frente da casa da avó, e de David Nascimento dos Santos, 23, que apareceu morto com as roupas trocadas após abordagem policial —ambos os episódios ocorreram em São Paulo e estão sob investigação—.

Para o ex-estudante de economia da USP (não concluiu o curso, mas conta que ainda “agitava” no movimento estudantil na época em que ajudou a fundar o MNU) e ex-metroviário (diz ter sido demitido duas vezes por perseguição política), a polícia se sente respaldada pelo Estado para torturar e matar, seguindo o que chama de projeto de genocídio da população negra, “especialmente da juventude negra”, instalado desde a abolição da escravatura. É esse mesmo projeto, escondido na estrutura da sociedade, que faz ainda com que muitos normalizem a violência e não se mobilizem para eliminá-la. “Sempre fui abordado pela polícia. Já fiquei a madrugada toda na cadeia, de bobeira, sem ter feito nada. Isso faz parte da nossa vida”.

Capa do jornal 'Folha de S.Paulo' de 8 de julho de 1978 noticia o ato de lançamento do MNU.
Capa do jornal ‘Folha de S.Paulo’ de 8 de julho de 1978 noticia o ato de lançamento do MNU.REPRODUÇÃO

Miltão, como também é conhecido pelo movimento, recorda que mesmo entre militantes políticos o combate ao racismo não era uma pauta prioritária há poucas décadas. “Nós sempre falamos para a esquerda que eles tinham que combater o racismo, que a maioria da população era negra, de trabalhadores, mas eles não entendiam na época. Eram na maioria de classe média, pequeno-burgueses”. Uma maior conscientização sobre a identidade brasileira veio com os exílios na ditadura. “Quando a ditadura pegou pesado, prendeu, torturou, matou, eles tiveram que fugir. E foi nos Estados Unidos, na Europa, que eles descobriram que eram não brancos”, provoca. “Descobriram que só o americano, o canadense, o europeu são de uma cor rosa e cabelo dourado”.

Saiba mais em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-07/o-papel-da-extrema-direita-e-fazer-a-populacao-oprimida-se-reestruturar-nos-temos-que-derrota-la.html

Comente aqui