Clipping

O socialismo indo-americano de José Carlos Mariátegui

José Carlos Mariátegui foi o pensador revolucionário mais original da América Latina, que combinou as análises marxistas com o vernáculo dos movimentos populares e indígenas na região. Noventa anos após sua morte prematura, seu trabalho continua extremamente relevante para as lutas emancipatórias.

Por Nicolas Allen / Tradução Mauro Costa Assis e Marco Túlio Vieira

Em abril deste ano, completou 90 anos que José Carlos Mariátegui faleceu em Lima. Com apenas 35 anos de idade na época, seu cortejo fúnebre foi assistido por dezenas de milhares de trabalhadores peruanos cuja veneração ao Amauta, ou “sábio”, beirava a religiosidade. Foi um tributo adequado a um revolucionário que sempre comparou o socialismo a uma espécie de vocação espiritual.

Muitas décadas depois, Mariátegui ainda é um dos pensadores marxistas mais originais da América Latina. Alguns chegam a dizer que o espírito da esquerda latino-americana segue essencialmente mariateguiano – uma corrente calorosa do marxismo humanista encarnado de forma singular por Mariátegui. Mas, como Antonio Gramsci ou Che Guevara, a fama de Mariátegui também teve um custo: alguns aforismos e bordões são a soma do que a maioria dos militantes de esquerda de carteirinha sabem hoje sobre o revolucionário peruano.

Essa redução de seu legado é mais lamentável ainda no momento que a América Latina precisa dos ensinamentos de Mariátegui agora mais do que nunca. O aniversário de noventa anos de sua morte mostra a região lutando e resistindo no meio de uma “Maré Azul” conservadora que, quando combinada com a crise da COVID-19 e uma iminente catástrofe econômica geral, pinta um quadro sombrio. Como comemorações em curso são atenuadas pelo panorama político e econômico atual, faria bem a esquerda latino-americana redescobrir no romantismo revolucionário de Mariátegui um antídoto para o fatalismo e o medo de que as forças reacionárias estejam se espalhando por toda a região.

Legados da Amauta

“Você não sabe quem é Mariátegui? Ele é o protótipo do novo homem americano.” Estas foram as palavras de Henri Barbusse, um antigo estadista do comunismo francês e conhecido de Mariátegui. Pode-se acrescentar: como fundador do Amauta, jornal de polêmica e cultura socialista que marcou toda uma geração, secretário-geral do Partido Socialista Peruano e criador da primeira federação sindical daquele país, Mariátegui foi na verdade o protótipo de um novo revolucionário latino-americano. Enquanto muitos socialistas do entreguerras rejeitaram a região como um “povo sem história”, o socialismo de Mariátegui o viu começar a fazer a história mundial à margem do sistema capitalista.

Muitos apontam, afobadamente, que Mariátegui não era um marxista convencional. Na verdade, o marxismo latino-americano – um conjunto que inclui correntes heterodoxas como a teologia da libertação, a teoria da dependência, a pedagogia crítica e outras – remonta ao final dos anos 1920, no que foram os anos finais da curta vida de Mariátegui. Foi então, com um ouvido para as rebeliões indígenas locais, movimentos estudantis e distúrbios trabalhistas, e o outro sintonizado com a revolução social na Europa, que o peruano chegou a uma de suas ideias mais importantes: que, embora o marxismo fosse de origem europeia, ele poderia ser ao mesmo tempo uma teoria universal de emancipação.

A obra de Mariátegui quase pode ser lida como um conceito sobre esta ideia: universalidade para o marxismo não significa a aplicação da teoria por meio da cópia, independentemente do lugar e do tempo; em vez disso, para ser verdadeiramente universal – e materialista – uma ideia deve ser capaz de repensar e remodelar categorias centrais como luta de classes e modos de produção para se ajustar às realidades específicas que encontra. Nos próprios termos de Mariátegui, o marxismo era “uma bússola” e não uma rota fixa, uma ferramenta que poderia ser usada por povos e nações oprimidas que tentassem encontrar seu próprio caminho.

Muitos contemporâneos rejeitaram o que consideravam uma fantasia eurocêntrica – o marxismo era, afinal, de estilo europeu. Ainda assim, Mariátegui parece ter rido por último: seu projeto político, unindo movimentos populares regionais com a doutrina revolucionária marxista, acabaria se tornando a história radical da América Latina do século XX.

Heresia sul-americana

Avisão política de Mariátegui começa a partir de uma intuição bem direta. Ao longo de sua história, o capitalismo assumiu diferentes formas, seja no centro ou na periferia. A partir daí Mariátegui raciocinou que, se o marxismo fosse ser uma ferramenta eficaz para os oprimidos pelo sistema capitalista, deveria ser exposto em um vernáculo local que pudesse refletir as variações regionais das relações sociais. Mais precisamente, escrevendo no Peru do início do século XX, com sua população predominantemente indígena, proletariado industrial minoritário e burguesia compradora, Mariátegui chegou à conclusão de que ser marxista nos Andes significava abraçar o “socialismo indo-americano”.

Até agora, a esquerda latino-americana elevou o debate sobre o “socialismo indo-americano” quase a um esporte competitivo. Em linhas gerais, o argumento de Mariátegui era que a doutrina moderna da luta de classes teria uma recepção calorosa entre as culturas “proto-comunistas” da região andina, e que essas comunidades indígenas ayllu, elas mesmas incipientemente socialistas, poderiam, por sua vez, se tornar o germe de um movimento socialista nacional.

Essa ideia causou calafrios. Primeiro, e mais obviamente, porque contrariava o chamado modelo etapista adotado por certos marxistas. Eles sustentavam que todas as sociedades deveriam passar por um período de pleno desenvolvimento capitalista – com correspondentes relações de classe “tradicionais” – antes de avançar para o socialismo. Porém, mais tarde na vida, quando Karl Marx se correspondeu com os populistas russos, ele teve ideias semelhantes às de Mariátegui. Tanto Mariátegui quanto Marx acreditavam ser possível a certas sociedades coletivistas – agora reconsideradas como superior aos pré-capitalistas – iniciar uma transformação socialista em todo o país.

A provocação de Mariátegui também contornou as linhas dominantes do debate da esquerda contemporânea na América Latina. Lá, o socialismo era comumente visto como uma tarefa a ser enfrentada após a independência econômica (burguesa) ter sido alcançada. A variante indo-americana, entretanto, imaginava o socialismo como o alfa e o ômega do projeto revolucionário. A alegação de Mariátegui, até hoje uma fonte viva de debate na região andina, era que o ayllu era uma forma de comunidade que havia resistido ativamente a ser dissolvida nas relações sociais mercantilizadas do capitalismo. Para jogar com a formulação de Nick Estes, a história deles era do futuro: um “socialismo de desastre” indígena cujo o comunalismo lhes permitiu sobreviver ao fim do mundo, ou, o que dava no mesmo, a conquista e aniquilação colonial.

Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2020/10/o-socialismo-indo-americano-de-jose-carlos-mariategui/

Comente aqui