Desmatar massivamente, artificializar e fragmentar as terras, extrair recursos minerais sem nenhum cuidado nem com as paisagens nem com seus habitantes, mas também mover povos, os isolar, destruir sua cultura, são ecocídios duplicados na maioria das vezes pelo etnocídio
Por Joelle Zask
Existe algo mais selvagem do que um incêndio florestal? Por duas razões: ele semeia a terra e regenera a paisagem, mas causa destruição e traz a morte[i]. Habitualmente, os incêndios acontecem de maneira razoável, pontualmente, e em temporadas. Eles fazem “parte” da natureza. Seu equivalente em inglês seria wilderness: a natureza separada das atividades humanas, não transformada por elas, que serve tanto como modelo, como explicação geral e, às vezes, como paraíso mais ou menos perdido.
Essa natureza sem humanos é, ou melhor, foi, real até há mais ou menos dois milhões de anos. Como mostra o grande historiador do fogo, Stephen Pyne, os incêndios que ele chama de “espontâneos” contribuíram para dar-lhe forma desde que o gás oxigênio existe na atmosfera. Esses incêndios, provocados essencialmente por relâmpagos em trovoadas secas, eram eventos regulares; na escala da vida humana, porém, eram raros. Eles eram suficientemente espaçados para que a floresta pudesse se regenerar no tempo que fosse necessário – entre 30 e 400 anos, dependendo da região.
Os incêndios que ocorrem atualmente na Califórnia ou na Amazônia, ao contrário, não são ‘selvagens’ no sentido de fazer parte da natureza. Eles são selvagens no sentido de ser destruidores, paroxísticos, violentos. O que corresponde a essa selvageria não é a wilderness mas o wild: a predação, a ferocidade, a “barbárie”, o que escapa a toda empreitada. Em nosso imaginário, normalmente, as “bestas selvagens” não são os esquilos e os gafanhotos, mas os grandes predadores que atacam suas presas, as matam e devoram. Os incêndios que arrasam a Califórnia, a Amazônia, a Austrália, a Sibéria e muitas outras regiões do mundo, são selvagens nesse sentido: são mega-incêndios.
Seja em sua extensão, em sua intensidade ou em sua duração, eles são incomparáveis com os incêndios florestais “normais”. Sua passagem provoca danos irreversíveis. Eles causam não a regeneração mas a desolação: as árvores são queimadas até as profundezas do tronco e das raízes principais, os animais morrem, as pessoas sufocam, a atmosfera se carrega de dióxido de carbono e de metano, que contribuem dramaticamente para o desregulamento do clima. As fumaças geradas pelos incêndios do sudeste australiano em janeiro de 2020 deram a volta ao redor do mundo e voltaram a seu ponto de partida em 18 dias.
Esses incêndios não tem nada de natural no primeiro sentido do termo. Excluindo aqueles provocados por relâmpagos, todos são de origem humana. Dependendo da região, 87 a 98% dos incêndios florestais são antrópicos. E muitos são criminais, seja diretamente ou indiretamente. Cerca de 40% dentre eles o são diretamente, sendo intencionalmente iniciados por vingança, maldade, usurpação de terra com fins de exploração ou loteamento, ou ainda por piromania ou ataque terrorista, como foi o caso daqueles provocados pelos habitantes de Gazacom dispositivos incendiários, balões e pipas, que destruíram, em 2018, reservas naturais únicas no mundo. O mega-incêndio que se alastra em Oregon no momento em que escrevo teria igualmente sido iniciado por um incendiário, Michel Jarrod Bakkela, que foi preso. Quanto aos mega-incêndios da Amazonia do fim do Verão de 2019 e, novamente, de hoje, sabemos que são em larga medida criminais, sendo encomendados por grandes proprietários de terra e até mesmo por certas multinacionais.
Mas todos esses incêndios, inclusive aqueles que são acidentais, não teriam a amplitude que têm se, para além disso, não se beneficiassem, em parte, das condições criadas pelo desregulamento climático cujos grandes responsáveis são conhecidos e, em outra parte, por más políticas de supressão sistemática de incêndios tradicionais. Desmatar massivamente, artificializar e fragmentar as terras, extrair recursos minerais sem nenhum cuidado nem com as paisagens nem com seus habitantes, mas também mover povos, os isolar, destruir sua cultura, são ecocídios duplicados na maioria das vezes pelo etnocídio e pela morte de inumeráveis animais selvagens. A socióloga Danielle Celermajer, da Universidade de Sydney, taxou, com razão, o mega-incêndio australiano de “omnicídio”, o assassinato de todas as coisas.
Duas formas do selvagem se confrontam: o selvagem adaptado que faz bem o seu trabalho, com precisão e regularidade, é desequilibrado pelo selvagem violento que transforma os incêndios florestais em “monstros assassinos”, as bestas selvagens em predadores sanguinários do gênero destes retratados a exaustão em vários filmes sobre animais destinados a provocar grande frisson. Eis aí os selvagens nos quais a extrema direita ou o ministro Gérald Darmanin deveriam pensar quando falam que a sociedade está ficando selvagem.
O confronto entre esses dois aspectos do selvagem não é uma ficção: hoje, quando a “natureza reclama seus direitos”, segundo a expressão que se tornou popular desde a experiência do confinamento, não é à maneira fofa demonstrada por alguns tocantes patinhos passeando sobre o asfalto que vivem, na verdade, desde muito tempo há 50 metros do lugar de sua “aparição”; é, de fato, frequentemente à maneira violenta de um “selvagem”: tsunamis, terremotos, inundações recordes, secas intermináveis, calor aterrador, ‘mega-incêndios’, mas também pandemia, fome, êxodo. É verdade, tal violência não existe em si, mas é inerente ao “antropoceno” que a gera e, em todo caso, é devastadora no que diz respeito às condições de existência de muitos seres vivos sobre a Terra, dentre os quais a espécie humana.
O planeta Terra não corre riscos. Ele nos precede em 4 bilhões de anos e sobreviverá a nós. Em contrapartida, o extrativismo e a deterioração dos ecosistemas, que caracterizaram a “racionalização” da natureza e o desenvolvimento da civilização industrial feita refém pelos sistemas capitalistas, privados ou públicos, não racionalizam mais nada, pelo contrário. Os incêndios devastadores existiram em um passado distante, mas eram raros. Não são mais. As colinas ficam peladas, a floresta é duramente destruída, cidades inteiras desaparecem. A “temporada de incêndios” se estende ao ano todo e os mega-incêndios se deslocam continuamente ao redor do planeta, passando até mesmo pelos polos, ao ponto de um possível cenário catastrófico elaborado pela NASA considerar que todas as terras emersas possam vir a se tornar brasa.
Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Mae-Terra/Os-mega-incendios/3/48787
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