Determinados assuntos quase nunca saem do foco da agenda política nacional.
Por Paulo Kliass
Determinados assuntos quase nunca saem do foco da agenda política nacional. A maior da população se declara totalmente a favor dos mesmos e todos consideram muito importante a sua aprovação pelo poder legislativo. Dentre eles, estão sempre presentes temas como o pacto federativo, a reforma política e a reforma tributária.
No entanto, a aparente unanimidade em torno da importância da matéria ser debatida com urgência não implica concordância quanto ao mérito das possíveis alterações a serem implementadas. A polêmica em torno de uma eventual reforma política expressa bem essa condição. É raro encontrar alguém que não esteja de acordo quanto às incongruências do modelo existente. Porém, isso não significa facilidade para encontrar um ponto de convergência para o rumo da mudança. As divergências aparecem quanto ao regime a ser adotado: parlamentarismo, presidencialismo ou algum modelo misto. Debate-se também quanto à limitação do número de partidos políticos ou a respeito das formas de financiamento da atividade político-partidária. As divisões surgem também quando se discute a existência de uma ou duas casas no legislativo, assim como a existência de mecanismos que estimulem a participação popular no processo político real. A recorrência dos processos de “impeachment” também introduz o tema do impedimento ou “recall” como método de controle social direto sobre o mandato do Executivo. Enfim, são tantos os aspectos polêmicos que, uma vez iniciado o debate, a reforma política deixa de ser a solução milagrosa para todos os problemas que se imaginava anteriormente.
Quem nunca pagou deve começar a pagar.
Algo semelhante ocorre com o tema da Reforma Tributária. A maioria tende a concorda quanto à necessidade de alteração no sistema atual. No entanto, cada grupo propõe um modelo diferente para substituir aquele que foi definido há mais de 30 anos pelos constituintes. Não cabe aqui a busca mítica de uma suposta neutralidade técnica para justificar uma ou outra abordagem para o tema. Qualquer que seja o modelo de tributação em foco, ele pressupõe a defesa de interesses econômicos e apresenta uma dimensão política inescapável. Tendo em vista tais dificuldades em compatibilizar tantas diferenças, o tema encontra obstáculos em avançar rumo a um consenso ou hegemonia, como seria o desejos de todos.
Via de regra, os empresários se apegam à reforma tributária com o intuito prioritário de promover a redução do volume de impostos. A narrativa antiga de uma suposta carga tributária muito alta encontra ressonância mais ampla, em razão de uma insatisfação ampla e generalizada a respeito dessa apropriação de parcela da renda nacional por parte do Estado. Isso se deve ao fato de que quase ninguém gosta de pagar impostos, em especial em um conjuntura marcada por um retorno de baixa qualidade no que se refere à oferta de bens e serviços públicos. As elites brasileiras nunca se preocuparam de fato com um projeto de Nação. Ao contrário, sempre estiveram limitadas ao retorno econômico-financeiro imediato, em uma perspectiva imediatista e utilitarista. Não manifestam qualquer problema com a situação de miséria e pobreza da maioria da população. Tampouco se sensibilizam com a perda de relevância de nossa inserção no cenário regional e internacional. Sua atenção se resume exclusivamente a encontrar os meios de pagar menos imposto. E ponto final.
Por uma Reforma Tributária justa e solidária.
A repartição dos impostos entre União, Estados e Municípios revela-se outro aspecto desse mesmo debate. É natural que exista tal disputa pelo bolo tributário entre os diferentes entes da federação, inclusive em função das múltiplas atribuições constitucionais existentes entre eles. As mudanças verificadas ao longo das 3 décadas de vigência do modelo aponta para uma excessiva centralização dos recursos no plano federal, mas a onda municipalista que se verificou no período também gerou muitas expectativas no que se refere à distribuição de recursos na direção das administrações das cidades. A dificuldade intrínseca ao processo se agrava, porém, quando se pretende promover rearranjos em períodos de crise econômica e de recursos minguados, uma vez que nenhum ator político ou social tende a aceitar que a sua parcela no total seja ainda mais reduzida.
Além da complexa repartição dos diferentes tipos de tributos entre as esferas da administração pública, existe também um conjunto de dificuldades, incoerências e sobreposições na estrutura de nossos impostos. Dessa forma, torna-se compreensível o discurso sempre presente em favor de uma simplificação tributária, com o intuito de torná-la mais eficiente para o poder púbico e também para os contribuintes. Uma das decorrências de tal aspecto é a permanência de um debate também acerca da unificação de tributos similares ou não. É o caso de impostos sobre bens e serviços cobrados em diferentes esferas e momentos do processo econômico. A tentativa de unificá-los todos sob uma única modalidade é antiga e sempre parou nos obstáculos de articular interesses da União (Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI), dos Estados (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS) e dos Municípios (Imposto Sobre Serviços – ISS). Uma das alternativas é criar um único imposto de valor agregado (IVA) de competência federal e repartir o bolo com 26 Estados e o Distrito Federal, além das mais 5.700 administrações municipais.
No entanto, existem problemas de natureza distinta a serem considerados em uma reforma tributária. Considerando que ela pode alterar a repartição de poder econômico, é necessário saber se o modelo a ser adotado será regressivo como o atualmente existente ou se o País deseja adotar algo de maior progressividade. Um sistema marcado pela regressividade supõe que a população de mais baixa renda paga proporcionalmente mais impostos e isso pode contribuir para tornar ainda mais grave a desigualdade social e econômica de uma sociedade. No sentido oposto, um sistema progressivo estabelece maior contribuição de tributos para as camadas de maior poder aquisitivo e patrimonial. O nosso caso é marcado por profunda regressividade. Os impostos se concentram sobre produção e consumo, fazendo com que a renda e a riqueza sejam muito pouco afetadas pela tributação. Assim, o valor dos impostos incidentes sobre um quilo de farinha, sobre o quilowatt de energia elétrica, sobre o impulso de um telefone celular, sobre um quilo de açúcar e assim por diante é sempre o mesmo. Não faz diferença se o cidadão tenha uma renda mensal de um salário mínimo ou receba uma renda de centenas de milhares de reais ao mês.
Taxar os mais ricos, o grande capital e as grandes fortunas.
As tarefas e oportunidades são muitas caso o objetivo seja mesmo o de promover um sistema tributário que seja mais equânime e que possa contribuir para redução das desigualdades existentes. A atual estrutura de imposto de renda, por exemplo, beneficia as rendas mais altas, pois apresenta a maior alíquota de apenas 27,5% para todas as faixas de rendimentos mensais superiores ao teto de R$ 4.664. Os ganhos de lucros e dividendos são beneficiados pela isenção de impostos, favorecendo o topo da pirâmide. Ainda não foi regulamentado o Imposto sobre Grandes Fortunas, tal como previsto no art. 153 da Constituição desde 1988. Nada foi colocado no lugar da CPMF, tributo que incidia sobre as transações financeiras bilionárias, as quais permanecem intocáveis. Tampouco foi implantado um sistema de geo-referenciamento para que a União tenha condições de recolher de forma efetiva o Imposto Territorial Rural em todo o espaço continental de nosso País. Além disso, não foi estabelecida a cobrança de tributos sobre a exportação de “commodities” como minerais, petróleo, soja, cana, a exemplo do que ocorre com a maior parte dos países que se dedicam a tais atividades.
Atualmente há alguns projetos de Reforma Tributária em debate e tramitação no interior do Congresso Nacional. Bolsonaro e Paulo Guedes vinham se esquivando de apresentar alguma proposta em nome do governo. Talvez tenham percebido tardiamente que a falta de protagonismo do Palácio do Planalto nessa agenda poderia oferecer aos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal (ambos do DEM, diga-se de passagem) os louros de eventual aprovação. Agora o superministro da economia saiu do silêncio e apresentou uma intenção. Começou por um modesto projeto de lei que unifica as contribuições do PIS e COFINS em um novo tributo, a CBS. Por enquanto, o máximo que se pode dizer é que a montanha pariu um rato. Aguardemos as próximas etapas, pois ele havia prometido novos projetos na sequência.
No campo do movimento das forças progressistas, um conjunto amplo de entidades, economistas e demais pesquisadores já haviam constituído, ainda em 2018, um movimento chamado Reforma Tributária Solidária. Esses profissionais entregaram uma proposta a esse respeito. Foram apresentadas diversas sugestões em diferentes momentos da discussão. Por exemplo, o documento “Reforma Tributária Solidária”, que pretende oferecer uma contribuição ao debate com uma visão alternativa ao que sempre pretendeu o establishment do financismo.
Atualmente, foi encaminhada nesse sentido uma proposta sob a forma de uma Emenda Global Substitutiva à PEC 45, em tramitação no Congresso Nacional. Trata-se do documento “Tributar os Ricos para Enfrentar a Crise”. São proposições infra constitucionais, de maior facilidade de aprovação no parlamento e que podem contribuir para reduzir nosso quadro de injustiça tributária, ao tempo em que aumentam a capacidade arrecadatória do Estado brasileiro. De acordo com o texto,
(…) Para enfrentar a crise gerada pela pandemia “Covid-19”, este documento apresenta oito propostas de leis tributárias que isentam os mais pobres e as pequenas empresas, fortalecem Estados e Municípios, geram acréscimo na arrecadação estimado em R$ 292 bilhões e incidem sobre as altas rendas e o grande patrimônio, onerando apenas os 0,3% mais ricos. A gravidade da conjuntura requer que essas medidas sejam aprovadas ainda em 2020, para que possam produzir efeitos já em 2021. A maior parte delas não requer emenda constitucional e, portanto, podem ser aprovadas pelo Congresso Nacional com mais agilidade. Em função da urgência que o momento impõe, esse estudo apresenta toda a legislação específica para cada uma das propostas recomendadas. (…)
Assim, o importante é desfazer o equívoco de que reformar a tributação tem necessariamente o significado de reduzir impostos. O sistema de organização social e econômico previsto em nossa Constituição é um mínimo de garantia de vida digna para maioria de nossa população. E para que ele funcione de forma adequada são necessários recursos a serem recolhidos sob a forma de tributos. Assim, a Reforma deve conceber um modelo que assegure esse conjunto de direitos e promova maior justiça fiscal. Isso significa fazer com que os setores que sempre foram beneficiados pela isenção, pela desoneração e pela não existência de tributos em algumas atividades passem a contribuir de forma solidária.
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Governo Federal
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