Clipping

Retrato do Império, em etapa decrépita

Um olhar antropológico sobre o declínio sociopolítico e cultural dos EUA. Como o país, triunfante há trinta anos, afundou em desigualdade, conflagração interna, retrocesso e prostração. O que o diagnóstico diz, também, sobre o Brasil

Por Wade Davis | Tradução de Simone Paz

Donald Trump, enfim, adoeceu de covid — depois de sua negligência e a de 
governantes como ele e Jair Bolsonaro provocarem a morte desncessãria de centenas de milhares. Mas os Trump, os Bolsonaro e os Duterte são a causa de nossos males ou a consequência de um declínio anterior, que precisa ser enxergado, se quisermos revertê-lo?

As reflexões do texto a seguir, do antropólogo colombiano-canadense Wade Davis, são uma provocação para norte-americanos, brasileiros e para todo o Ocidente. “Quando todas as suas antigas certezas revelam-se mentiras, quando a promessa de uma vida boa para uma família trabalhadora é quebrada com o fechamento de fábricas ou com líderes corporativos enriquecendo a cada dia, criando empregos no exterior, o contrato social é irrevogavelmente quebrado”, diz ele em certo trecho — de extrema utilidade para explicar também a emergência do bolsonarismo, cujas causas a maior parte da esquerda brasileira ainda partece não ter compreendido.

A análise rasgante do texto levou “Outras Palavras” a traduzi-lo — apesar de nossas reservas aos preconceitos eurocêntircos do autor diante da China, com os quais não nos associamos. A leitura, ainda assim, é instigante, provocadora e indispensável (A.M.)

Nunca vivemos antes a experiência de um fenômeno tão global. Pela primeira vez na história mundial, toda a humanidade, informada graças ao alcance  — até então inédito — da tecnologia digital, viu-se unida e focada na mesma ameaça existencial, consumida pelos mesmos medos e incertezas — e antecipando-os ansiosamente junto com as promessas ainda não alcançadas pela ciência médica

Ao longo de poucos meses, a civilização foi derrubada por um parasita microscópico 10 mil vezes menor do que um grão de sal. O Covid-19 ataca nossos corpos físicos, mas também os alicerces culturais de nossas vidas, a caixa de ferramentas de comunidade e conectividade, que para os seres humanos equivalem ao que garras e dentes representam para os tigres.

Nossas intervenções, até agora, concentraram-se principalmente em mitigar a taxa de disseminação, para achatar a curva de mortalidade. Não há tratamento disponível, nem a certeza de uma vacina no horizonte próximo. A vacina mais rápida já desenvolvida na história foi a da caxumba. Demorou quatro anos. O Covid-19 matou 100 mil estadunidenses em quatro meses. Há algumas evidências de que a infecção natural pode não implicar imunidade, o que faz alguns questionarem a eficácia de uma vacina, supondo que ela seja desenvolvida. Além do mais, ela deve ser segura. Se a população global for imunizada, complicações letais na proporção de apenas uma pessoa para cada mil significam a morte de milhões

Pandemias e pestes costumam mudar o curso da história, e nem sempre de uma maneira imediatamente evidente para os que sobrevivem. No século XIV, a Peste Negra dizimou quase metade da população da Europa. A escassez de mão de obra levou ao aumento dos salários. As expectativas crescentes culminaram na revolta camponesa de 1381, um ponto de inflexão que marcou o início do fim da ordem feudal que dominou a Europa medieval por mil anos.

A pandemia da covid será lembrada como um desses momentos da história, um evento seminal cujo significado só se revelará na esteira da crise. A pandemia vai marcar nossa era tanto quanto o assassinato do arquiduque Ferdinando em 1914, a Grande Depressão de 1929 e a ascensão de Adolf Hitler em 1933 tornaram-se referências fundamentais do século passado. Todos mensageiros de resultados e consequências maiores.

O significado histórico da covid não reside no quanto ela interfere em nossas vidas cotidianas. Afinal, a mudança é uma constante quando de cultura se trata. Todas as pessoas, em todos os lugares, em todos os momentos, estão sempre lidando com novas possibilidades de vida. Conforme as empresas eliminam ou reduzem o tamanho dos escritórios centrais, os funcionários trabalham em casa, os restaurantes e os shoppings fecham, o streaming traz entretenimento e eventos esportivos para casa e as viagens aéreas se tornam cada vez mais problemáticas e miseráveis, as pessoas adaptam-se, como sempre fizeram. A fluidez da memória e a capacidade de esquecer são, talvez, os traços mais assustadores de nossa espécie. Como a história confirma, eles nos permitem enfrentar qualquer grau de degradação social, moral ou ambiental.

É um fato que a incerteza financeira irá projetar uma grande sombra. Por algum tempo, vai pairar sobre a economia global a humilde compreensão de que nem mesmo todo o dinheiro de todas as nações da Terra será suficiente para compensar as perdas sofridas quando o mundo inteiro deixa de funcionar, com trabalhadores e empresas de todos os lugares enfrentando uma escolha entre a sobrevivência econômica e a biológica.

Por mais perturbadoras que essas transições e circunstâncias sejam, com exceção de um colapso econômico completo, nenhuma delas se destaca como um momento decisivo na história. Mas se há uma coisa que se destaca. Foi o impacto absolutamente devastador que a pandemia teve sobre a reputação e a posição internacional dos Estados Unidos.

Em uma sombria temporada de pandemia, o Covid reduziu a frangalhos a ilusão do excepcionalismo americano. No auge da crise, com mais de 2 mil pessoas morrendo por dia, os norte-americanos viram-se no interior de um Estado falido, comandado por um governo disfuncional e incompetente, em grande parte responsável pelas taxas de mortalidade, o que acrescentou um trágico fim à reivindicação, pelos EUA, de supremacia no mundo.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/retrato-do-imperioem-etapa-decrepita/

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