Clipping

Terras da reforma agrária vão parar na mão de políticos

Declarações de bens de candidatos mostram que eles acumulam terras em assentamentos, a maior parte deles na Amazônia, especialmente em locais com altos índices de desmatamento

Alceu Luís Castilho | Leonardo Fuhrmann |Mariana Franco Ramos

Terras em assentamentos de reforma agrária aparecem nas declarações de bens de centenas de candidatos a prefeito nas eleições de 2020. Seriam eles políticos camponeses, que utilizam as propriedades para subsistência? Não exatamente. Os assentamentos são áreas públicas, algumas delas frutos de desapropriações, entregues em projetos de democratização do acesso à terra pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) ou por seus similares, nos governos federal e estaduais. Um levantamento inédito feito pelo portal De Olho nos Ruralistasna base de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), divulgado com exclusividade por EL PAÍS, mostra que alguns desses candidatos declaram oficialmente que acumulam patrimônio milionário, diversos lotes em assentamentos —o que contraria o princípio distributivo da reforma agrária— e fazendas tradicionais, adquiridas regularmente no mercado.

Parte expressiva dessas terras fica nos nove Estados que compõem a Amazônia Legal: Mato Grosso, os sete estados da região Norte e a maior parte dos municípios do Maranhão. Foi essa região a escolhida, por governos de diferentes orientações políticas, para que pequenos produtores tivessem acesso à terra. E é nela que os políticos ostentam as terras como propriedades quaisquer. A pesquisa mostra que esses candidatos nasceram em vários pontos do país e têm ali seu Eldorado político— em meio a terras concebidas para terem função pública, e não para servirem à especulação imobiliária.

Nada menos que 895 imóveis em assentamentos foram declarados por 35 candidatos a prefeito, 38 candidatos a vice e 822 candidatos a vereador. Entre os 35 que tentam ser prefeitos, ao longo de todo o Brasil, 15 (43%) declararam possuir terras da reforma agrária na Amazônia Legal. O percentual nessa região entre os que buscam as vice-prefeituras (39%) e as Câmaras Municipais (42%) são similares. A proporção é três vezes maior que aquela entre o total de municípios da Amazônia Legal (772) e o total de municípios do país (5.570). A história de cada um desses candidatos confirma a tendência de concentração de território e renda entre políticos —com as terras da reforma agrária transformadas em instrumentos de enriquecimento.

A reportagem procurou, desde o início da semana, todos os políticos citados na reportagem, mas até a publicação desta edição obteve somente uma resposta, citada nesta matéria.

Propriedades

Candidato à reeleição em Novo Santo Antônio (MT), o goiano Adão Soares Nogueira possui quase 5 milhões de reais. Mesmo assim ele tem terras no Projeto de Assentamento (PA) Macife I. Não um lote, mas quatro. Somente essas propriedades ultrapassam os 3 milhões de reais, conforme ele informou à Justiça Eleitoral. Conhecido como Adão Belchior, esse político do DEM nascido em Paranã, hoje um município do estado do Tocantins, viu o patrimônio saltar de 3,5 milhões de reais, quando assumiu a prefeitura, há quatro anos, para 4,9 milhões de reais.

O município na região do Araguaia foi construído em território Xavante, nas margens do Rio das Mortes. Possui 2.000 habitantes e um Produto Interno Bruto (PIB) de 15,2 milhões de reais, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas três vezes superior ao patrimônio do prefeito. O PIB per capita é de 6.840 reais. As terras entregues pelo poder público para a produção de camponeses viraram fazendas nas mãos de Belchior. Mais de 3 milhões de reais de sua riqueza — em terras que somam 582 hectares — são frutos de assentamentos. Não do que ele produz ali, apenas do preço das terras. Os assentamentos federais são de responsabilidade do Incra, criado na ditadura militar, em 1970. Alguns estados têm órgãos com a mesma função.

O acúmulo de imóveis da reforma agrária nas mãos de um único dono é visto como uma distorção do sistema. “Na melhor das hipóteses são assentamentos antigos, já bastante descaracterizados”, diz Pedro Martins, assessor jurídico da ONG Terra de Direitos na Amazônia. No caso de Adão Belchior, que acumula também terras que não eram da reforma agrária, a produção se destina à pecuária: o político goiano tem 499 cabeças de bois da raça nelore, avaliadas por ele em 1 milhão de reais. Isto localizado em um dos 267 municípios que mais desmatam no Brasil, aqueles do Arco do Desmatamento.

Outra assentada com patrimônio milionário no Arco do Desmatamento é a paranaense Carmelinda Leal Martins Coelho (DEM), prefeita de Carlinda, no norte do Mato Grosso. Entre os 2,88 milhões de reais declarados ao TSE estão 226.000 de quatro lotes no assentamento Carlinda. O próprio município nasceu de um assentamento, em 1981. Não é algo incomum na Amazônia: em Manicoré, município do sul do Amazonas que também está entre os que mais desmatam no Brasil, um projeto do Incra no quilômetro 180 da Transamazônica é hoje um vilarejo, o distrito de Santo Antônio do Matupi, um polo de expansão de madeireiros na região.

Imagem de arquivo de um vilarejo no Amazonas que deveria ser um assentamento.
Imagem de arquivo de um vilarejo no Amazonas que deveria ser um assentamento.ALCEU CASTILHO

A situação em Carlinda já causava preocupação no professor Damião de Souza Ramos em 2009. Criado no assentamento, ele apontava no site Só Notícias a transferência das terras para latifundiários: “Existem linhas inteiras divididas entre dois proprietários, outras com blocos de 6, 5 e 4 sítios por proprietários”. Em 2006, na primeira eleição que disputou, a prefeita de Carlinda dispunha de 1,94 milhão de reais. Nascida em Assis Chateaubriand, no Paraná, mas radicada no Mato Grosso, a milhares de quilômetros, a candidata à reeleição pelo DEM é dona de um rebanho de 566 cabeças de boi, declaradas por 1,48 milhão de reais.

Saiba mais em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-11-12/terras-da-reforma-agraria-vao-parar-na-mao-de-politicos.html

Comente aqui