Diante da catástrofe, ressurge a busca pelo pós-capitalismo. Talvez a pista esteja onde o marxismo do século XX não a enxergou: priorizar o Comum, a igualdade e novas relações com a Natureza – em vez do fetiche do “progresso” material
Por John Bellamy Foster | Tradução: Beatriz Vital
Uma consideração séria da renovação do socialismo, hoje, deve começar pelo enfrentamento à destruição criativa, perpetrada pelo capitalismo, das bases de toda existência social. Desde o final dos anos 1980, o mundo tem sido engolfado pelo capitalismo da catástrofe, definido como o acúmulo de catástrofes iminentes, por todos os lados, devido às consequências não intencionais da máquina da morte do capital [orig: juggernaut of capital].1 Assim conceituado, o capitalismo da catástrofe manifesta-se hoje na convergência entre (1) a crise ecológica planetária, (2) a crise epidemiológica global e (3) a infindável crise econômica mundial.2 Somam-se a isso as principais características do atual “império do caos”, inclusive: o extremo sistema de exploração imperialista desencadeado pelas cadeias globais de mercadorias; o ocaso do Estado liberal-democrático, relativamente estável, com a ascensão do neoliberalismo e do neofascismo; e a emergência de uma nova era de instabilidade da hegemonia global, acompanhada pelos crescentes perigos de uma guerra ilimitada.3
A crise climática representa o que o consenso científico mundial chama de situação “sem análogo”a, na qual estarão ameaçadas, se o saldo das emissões de carbono provenientes da queima de combustíveis fósseis não chegar a zero nas próximas décadas, a própria existência da civilização industrial e, em última análise, a sobrevivência humana.4 Essa crise existencial não se limita, porém, às mudanças climáticas; ela abarca a violação de outros limites planetários que, juntos, delineiam a fratura ecológica global no sistema terrestre como um lugar seguro para a humanidade. Eles incluem: (1) a acidificação dos oceanos; (2) a extinção de espécies (e perda de diversidade genética); (3) a destruição de ecossistemas florestais; (4) a perda de água doce; (5) a interrupção dos ciclos de nitrogênio e fósforo; (6) a rápida disseminação de substâncias tóxicas (inclusive radionuclídeos); e (7) a proliferação descontrolada de organismos geneticamente modificados.5
Essa ruptura dos limites planetários é intrínseca ao sistema de acumulação de capital, que não conhece barreiras intransponíveis ao seu avanço quantitativo, exponencial e ilimitado. Sendo assim, não há saída para a atual destruição capitalista do conjunto das condições sociais e naturais de existência que não seja uma saída do próprio capitalismo. O essencial é a criação do que István Mészáros chamou, em Para além do capital, de um novo sistema de “reprodução metabólica social”.6 O socialismo surge, assim, como aparente herdeiro do capitalismo do século XXI, mas concebido de maneiras que desafiam, criticamente, a teoria e a prática do socialismo à maneira do século passado.
A polarização do sistema de classes
Nos Estados Unidos, setores cruciais do capitalismo monopolista-financeiro conseguiram, agora, mobilizar elementos próprios da classe média baixa, majoritariamente branca, na forma de uma ideologia nacionalista, racista e misógina. O resultado é o nascimento de uma classe política neofascista, que capitaliza a longa história de racismo estrutural herdeira da escravidão, do colonialismo de ocupação e do militarismo/imperialismo global. A relação desse neofascismo em ascensão com a conformação política neoliberal já existente é a de “irmãos inimigos”, caracterizada por uma feroz disputa pelo poder associada à repressão, comum a ambos, da classe trabalhadora.7 Foram essas as condições que propiciaram a ascensão do bilionário Donald Trump, magnata do mercado imobiliário de Nova York, como líder da chamada direita radical, o que levou à imposição de políticas direitistas e à instauração de um novo regime autoritário capitalista.8 Mesmo que a facção neoliberal da classe dominante vença a próxima eleição presidencial, derrubando Trump e substituindo-o por Joe Biden, uma aliança neoliberal-neofascista, reflexo de necessidades internas da classe capitalista, provavelmente continuará a formar a base de poder estatal sob o capitalismo financeiro-monopolista.
Simultaneamente à configuração dessa nova política reacionária, ressurge, nos Estados Unidos, um movimento em prol do socialismo, cuja base é composta da maioria da classe trabalhadora e de intelectuais dissidentes. O fim da hegemonia dos EUA dentro da economia mundial, acelerado pela globalização da produção, enfraqueceu a antiga aristocracia operária, de base imperialista, em certos setores privilegiados da classe trabalhadora, o que conduziu ao ressurgimento do socialismo.9 Confrontado com o que Michael D. Yates chamou de “a grande desigualdade”, o grosso da população dos Estados Unidos, especialmente os jovens, tem cada vez menos perspectivas, encontrando-se em um estado de incerteza e, frequentemente, desespero, marcado por um aumento dramático nas “mortes por desespero”.10 Eles estão cada vez mais alienados de um sistema capitalista que não lhes oferece nenhuma esperança e são atraídos pelo socialismo como a única alternativa genuína.11 Embora a situação estadunidense seja única, forças objetivas semelhantes, que impulsionam o ressurgimento dos movimentos socialistas, estão presentes em outras partes do sistema, principalmente nos países do sul, em uma era de contínua estagnação econômica, financeirização e declínio ecológico universal.
Se, porém, o socialismo parece estar novamente em ascensão, no contexto da crise estrutural do capitalismo e do aumento da polarização entre classes, fica o questionamento: que tipo de socialismo é esse e de que maneiras ele difere do socialismo do século XX? Boa parte do que está sendo chamado de socialismo nos Estados Unidos e outras partes do globo tende para a social-democracia, na busca de uma aliança com os liberais de esquerda e, portanto, com a ordem existente, na vã tentativa de fazer o capitalismo funcionar melhor por meio do fomento à regulação e ao bem-estar social, em oposição direta ao neoliberalismo, mas em uma época em que o próprio neoliberalismo está dando lugar ao neofascismo.12 Movimentos como esses são canoas furadas no atual contexto histórico, pois é inevitável que traiam as esperanças suscitadas, já que se concentram na mera democracia eleitoral. Felizmente, também estamos vendo hoje o crescimento de um socialismo genuíno, evidente na luta extraeleitoral, na intensificação da ação de massas e no apelo a ir além dos parâmetros do sistema vigente, a fim de reconstituir a sociedade como um todo.
A inquietação geral latente na base da sociedade dos Estados Unidos veio à tona nas revoltas de fins de maio e junho deste ano, que assumiram a forma, praticamente inédita na história do país desde a Guerra de Secessão, de enormes manifestações de solidariedade, com milhões nas ruas, e com a classe trabalhadora branca, e a juventude branca em particular, desafiando o racismo em resposta ao linchamento de George Floyd, morto pela polícia apenas por ser negro.13 Esse foi o estopim, em meio à pandemia do coronavírus e à depressão econômica, dos furiosos dias de junho nos EUA.
Entretanto, embora o movimento em direção ao socialismo, crescente agora até mesmo nos Estados Unidos, “coração bárbaro” do sistema, avance como resultado de forças objetivas, falta-lhe uma base subjetiva adequada.14 Um grande obstáculo à formulação de objetivos socialistas estratégicos no mundo atual tem a ver com o abandono, por parte do socialismo do século XX, de seus próprios ideais, originalmente articulados na visão comunista de Karl Marx. Para entender o problema, é preciso ir além das recentes tentativas da esquerda de compreender filosoficamente o comunismo, o que levou, na última década, a percepções abstratas da “ideia comunista”, da “hipótese comunista” e do “horizonte comunista” debatidos por Alain Badiou, entre outros.15 Em vez disso, é necessário um ponto de partida historicamente mais concreto, que focalize diretamente a teoria de duas fases do desenvolvimento socialista/comunista que emergiu da Crítica do programa de Gotha, de Marx, e de O Estado e a revolução, de Lênin. O artigo de Paul M. Sweezy, “Communism as an Ideal”, publicado há mais de meio século na Monthly Review de outubro de 1963, é um texto clássico a esse respeito.16
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/hipotese-para-renovar-o-projeto-socialista-1/
Comente aqui