Liderança conta a experiência em sua aldeia, no noroeste do Amazonas. No início, o pavor com o vírus disseminado, sem auxílio do governo e distantes de hospitais. Mas o resgate de saberes tradicionais e a solidariedade afastaram a doença
Por Angela Pappiani
Relato de Gersem José dos Santos Luciano, da aldeia Yaquirana (AM), a Angela Pappiani
São Gabriel da Cachoeira, no noroeste do Amazonas, é um dos maiores municípios do país, maior do que muitos países europeus e estados brasileiros, localizado na divisa com Colômbia e Venezuela. É também o mais indígena, com 90% da população pertencente a 22 etnias, e o primeiro a reconhecer idiomas nativos como oficiais. O Rio Negro entra em território brasileiro justamente ali, marcando a fronteira entre nossos vizinhos, e circula suas águas escuras recebidas de outros importantes rios em meio a florestas, montanhas e cachoeiras onde os ancestrais deixaram suas marcas no formato das pedras, petroglifos, narrativas. São povos indígenas de três diferentes famílias linguísticas mas que compartilham cosmologias, afinidades culturais e uma rede complexa de relações há pelo menos 2 mil anos. Muitos saberes, conhecimentos, filosofia, arte que por muito tempo permaneceram camuflados para conseguirem sobreviver aos colonizadores que desde o século 17 implantaram sua religião, seu modo de vida e a escravidão aos povos indígenas.
Essa área do Alto Rio Negro, reconhecida e disputada por suas reservas minerais valiosas, tem sua proteção garantida, pelo menos no papel, pela criação de territórios indígenas e florestas nacionais. Mas sofre a pressão para abertura de mineração com a flexibilização da legislação em vigor. No momento, apesar da queda no número de contaminados pelo coronavírus, a população sofre com o aumento da malária e a ameaça de uma segunda onda da pandemia que já começou em Manaus.
Gersem José dos Santos Luciano, nasceu na aldeia Yaquirana, do povo Baniwa, mestre em antropologia, professor da UFAM, com atuação política junto à COIAB (Coordenação Indígena da Amazônia Brasileira) e FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro) fala sobre o caos na saúde pública no Amazonas, a falta de informação que contribuiu para o aumento da contaminação, sobre outras epidemias na mesma região e as estratégias dos povos indígenas do Rio Negro para vencerem esse mal.
“No caso especifico do Rio Negro houve, num primeiro momento, um susto muito grande, uma preocupação enorme, quase um desespero pela falta de informação ou, pior ainda, pelas informações ruins, truncadas que chegavam. Foi apavorante. Os povos indígenas ficaram somente com as informações que chegavam pela TV ou agentes de saúde indígenas. A letalidade foi assustadora por isso, pelo desespero e pela pressa. Perdemos pessoas importantes como os anciãos e também gente nova, professores. Por conta dessa falta de informação não foi possível ter nenhuma estratégia preventiva, isolamento.
Primeiro as pessoas pensavam que porque estavam muito longe o vírus não chegaria, porque tinham suspendido a circulação de barcos e de aviões e havia um comitê de monitoramento.
Depois dos primeiros óbitos, houve uma correria, principalmente de indígenas que estavam na cidade de São Gabriel da Cachoeira, onde 80% da população é indígena. Como a informação era de que a doença atingia principalmente os idosos, as famílias se apavoraram e decidiram sair da cidade para se isolar nas aldeias. Aí perceberam que a contaminação já tinha chegado nas aldeias, o vírus já estava circulando há muito tempo.
Esse foi o primeiro cenário. De desinformação e contrainformação, o embate entre os médicos, a ciência e o governo federal. E os agentes locais perdidos no meio disso, com diferentes estratégias e interpretações.
No segundo momento, houve perdas significativas. Quando se verificou que já estava espalhado por aquela região imensa de quase mil aldeias, as lideranças indígenas tomaram uma decisão importante: conhecemos nossa realidade, aqui não tem a presença do estado, as políticas públicas não chegam, médico não chega, não tem enfermeiro, não tem exame, não tem remédio. Então não há o que esperar. Temos que encarar como das outras vezes. Não é a primeira vez que epidemias assolam as populações indígenas. Minha geração, aqui na região do Rio Negro, enfrentou uma epidemia terrível, muito mais letal do que esta, que foi o sarampo, nas décadas de 70 ou 80. Foi umas 10, 20 vezes mais letal do que este vírus. Pelo menos até agora, creio que tivemos 60 óbitos em nossa região.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/vozes-indigenas-como-os-baniwa-enfrentam-a-covid/
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