Wagner Moura escreve sobre o livro de ensaios de Leonardo Padura: “longe dos simplismos com que a ilha costuma ser tratada, temos o privilégio de contar com um dos maiores escritores vivos como guia no caminho para compreender as complexidades de um país marcado, para sempre, pelo ano 1959.”
Por Wagner Moura
Água por todos os lados investiga a construção da identidade de uma nação. Ao longo de suas páginas, Leonardo Padura oferece pistas para o leitor decodificar o enigma catalisador de paixões que é a ilha de Cuba, a partir de obras que a fundaram simbolicamente.
O pertencimento é tema essencial; ainda assim, nunca soa paradoxal o fato de muitos dos autores que criaram o imaginário definidor da Cuba afetiva o terem feito do exílio, como Heredia, Cabrera Infante, Alejo Carpentier, Reinaldo Arenas e o próprio José Martí. Padura, por sua vez, escolheu permanecer em Havana, onde vive na mesma casa construída por seu pai, no periférico bairro de Mantilla. Outros nomes, como Virgilio Piñera, que cunhou a frase que dá título a este livro, morreram em vida, assassinados por uma estúpida burocracia cultural, à qual Padura não se escusa de denunciar.
O autor deste livro cresceu nos esplendorosos primeiros anos de uma revolução que tinha a educação e a cultura como conceitos fundamentais. Aqui, longe dos simplismos com que a ilha costuma ser tratada, temos o privilégio de contar com um dos maiores escritores vivos como guia no caminho para compreender as complexidades de um país marcado, para sempre, pelo ano 1959.
Li Água por todos os lados com o interesse e o prazer de alguém fascinado por Cuba, por sua história, por seu povo; fascinado pelo entendimento de que a alma de uma nação é forjada por sua produção cultural; e fascinado pela extraordinária literatura de Leonardo Padura.
O ensaísmo social e cultural de Padura
“No dejes que te olvide”, cantou Bola de Nieve. A lição do bolero embala a leitura desta antologia de Leonardo Padura sobre as histórias que criou, sobre os fatos e os personagens – reais ou fictícios – que não esqueceu. Impetuoso e inesperado como uma onda forte na maré baixa, o passado se ergue e se agiganta antes de se espraiar nas lembranças do autor.
Dividida em três partes, a seleção de textos é uma convidativa porta de entrada para o “armazém de memórias” de Padura. Circunstâncias pessoais e reflexões geracionais se alternam no ritmo da prosa elegante do autor, que recorre a dramas e contradições de Havana e, em especial, ao pertencimento despertado pela vivência em seu bairro, Mantilla, para forjar o que define como “amálgama do insólito”.
Do mistério à revelação, Padura expõe a crise de identidade que resultou no nascimento de seu personagem mais conhecido, Mario Conde (“policial de ofício, mas não de alma”), a escolha da voz narrativa e a decisão de escrever romances policiais impregnados de referências sociais, capazes de expressar o desencanto com as transformações da sociedade. Ao iluminar também o percurso de O homem que amava os cachorros (2009), ele presenteia os leitores com a fascinante e minuciosa reconstituição dos cinco anos de pesquisa e arquitetura do maior êxito comercial. Depois, troca Moscou por Amsterdã e reproduz o impacto de uma das inspirações para Hereges (2013), uma visita ao estúdio de Rembrandt que somente ocorreu após a interferência de sua mulher, a roteirista Lucía López Coll, organizadora desta coletânea.
A literatura dos compatriotas também ocupa lugar de destaque na antologia. Além de analisar os motivos do desterro do poeta romântico José María Heredia, no século XIX, e de esmiuçar O século das luzes, de Alejo Carpentier, Padura traça um panorama da produção literária de seu país nas últimas décadas. Ele detalha, ainda, as devastadoras consequências da degradação econômica iniciada nos anos 1990 e aponta dificuldades cotidianas no regime socialista. Mas faz questão de pontuar, com argúcia, que não se deve exigir de um escritor cubano o que não é cobrado de autores norte-americanos ou europeus: mais palavras sobre política que a respeito de literatura.
Leonardo Padura ignora fronteiras. Com a desenvoltura e a destreza de um mestre, transita entre gêneros literários e move seus personagens no tempo e no espaço. Do muro do Malecón, esse frustrado jogador de beisebol arremessa sua imaginação e mergulha em um oceano de nostalgias e impulsos, paixões e convicções, matizes e cicatrizes. Cuba perdeu um pelotero esforçado e ganhou um escritor tão notável quanto generoso ao compartilhar reminiscências, inquietações e etapas de seu processo de criação.
— Carlos Marcelo
Saiba mais em:https://blogdaboitempo.com.br/2020/10/28/wagner-moura-a-escrita-de-padura-e-o-enigma-da-ilha-de-cuba/
Comente aqui