Manifestações artísticas de representantes de povos originários estiveram presentes em alguns dos principais espaços culturais do país. Para especialistas, engajamento em causas ambientais é inerente à própria produção.
Por: Edison Veiga
Seja na Bienal de Arte de São Paulo, na Pinacoteca, no Sesc, na Flip, no Masp… Sob a ótica não indígena, pode-se dizer que nunca a arte feita pelos povos originários esteve tão em evidência como no Brasil de 2021. Para especialistas no assunto, obras contemporâneas de artistas indígenas têm sua potência por não poderem se desvincular do engajamento na defesa da natureza e da vida no planeta.
“A arte indígena sempre existiu e é também um processo de resistência, com suas transformações, hibridações, por ser também um veículo de luta nesse momento”, analisa a artista, ativista e pesquisadora Naine Terena, professora na Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat).
“Do ponto de vista da visibilidade e inserção no universo da arte, talvez seja algo mais recente, já que, como muitos dizem, ela estava delegada ao universo da etnografia. O crescente interesse na arte indígena, a partir da perspectiva da produção artística, e dos artistas e coletivos, penso eu, não deve ser visto com o olhar dessa história da arte que conhecemos, que pautou o entendimento dos momentos da arte no mundo. Precisamos ouvir os artistas, anciãos, lideranças indígenas, para entender a complexidade de sua existência, que não é desconectada da complexidade que é ser indígena”, diz.
Quando 2021 começou, já estava em cartaz na Pinacoteca de São Paulo a mostra “Véxoa: Nós Sabemos” – da qual Terena foi curadora. Com pinturas, esculturas, objetos, vídeos, fotografias e instalações assinadas por 23 artistas e coletivos de diversas partes do país, foi a primeira vez que o prestigiado museu paulista dedicou uma exposição à produção indígena contemporânea.
Espaço digital para arte indígena
Mais recentemente, o Sesc São Paulo reservou um espaço privilegiado do já tradicional evento Ocupação Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas para promover a arte indígena. No final de novembro, foi lançada ali a plataforma TePI –Teatro e os Povos Indígenas (www.tepi.digital), primeiro espaço digital exclusivamente dedicado a promover as artes cênicas dos povos originários.
“Depois de tantas reflexões, para além da ideia de um teatro estabelecido apenas no palco, é interessante observar outras formas de fazer teatro, entender o teatro como expressão do corpo, algo que produz estética, política e comunica de forma a iluminar novas ideias de estar no mundo”, explica uma das idealizadoras do projeto, a atriz, curadora e diretora artística Andreia Duarte.
“A arte indígena contemporânea sempre foi contemporânea porque é do nosso tempo. E a arte sempre existiu no mundo indígena, das narrativas às arquiteturas, passando pelas expressões corporais e pelo canto.”
Mais importante festival literário brasileiro, a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) também decidiu reconhecer a importância dos indígenas. Em vez de eleger um escritor homenageado, como é tradição, desta vez os celebrados foram “todos(as) os(as) pensadores(as), conhecedores(as) e mestres(as) indígenas que tiveram suas vidas interrompidas pela covid-19”, segundo o texto de apresentação. Entre os participantes da Flip estiveram o cineasta e líder indígena Carlos Papá, a educadora Cristine Takuá, e o filósofo, escritor e ambientalista Ailton Krenak.
Considerada uma das mais icônicas instituições de arte brasileiras, o Museu de Arte de São Paulo (Masp) também incluiu a temática em sua programação. Antecipando o fato de que em 2023 o museu deverá dedicar-se ao tema da história e da cultura indígenas, houve em novembro um seminário on-line sobre o assunto. A inclusão também se faz presente no acervo: em setembro, a artista visual Duhigó se tornou a primeira indígena amazonense a expor no Masp.
Mas sem dúvida o ponto alto do reconhecimento do segmento artístico foi a Bienal Internacional de São Paulo. Em sua 34ª edição, encerrada no início de dezembro, o evento destacou pela primeira vez de modo considerável a arte indígena contemporânea. Foram nove representantes de culturas dos povos originários, cinco deles brasileiros — Daiara Tukano, Gustavo Caboco, Sueli Maxacali, Uýra e Jaider Esbell. Por conta disso, muitos chamaram esta de “a bienal dos indígenas”.
Nem tudo foram boas notícias, contudo. O ano também ficará marcado pela morte precoce de Esbell, em 5 de novembro, aos 42 anos. Artista, arte-educador, geógrafo, escritor, curador e ativista, o indígena macuxi estava no auge de sua carreira.
Meio ambiente e defesa dos territórios
O reconhecimento da importância artística dos povos indígenas tem a ver com um mergulho nas próprias origens, mas também com as preocupações mais urgentes dos tempos atuais — ou seja: as questões ambientais. Para o artista visual Denilson Baniwa, “é impossível que a produção de uma pessoa indígena se distancie de quem ela é ou da luta que ela representa”.
Nesse sentido, as obras desses expoentes têm em comum discursos em defesa de seus territórios e da valorização de suas historiografias e temas ligados à preservação do meio ambiente.
No primeiro grupo, enquadra-se a obra da cineasta Glicéria Tupinambá, que ao longo dos últimos anos conseguiu resgatar a tradição dos mantos tupinambás, graças à descoberta de uma peça na reserva técnica do museu do Quai Branly, em Paris. “A partir de sua pesquisa e observação, ela reconstruiu um manto que hoje serve de aval para a construção de outros, propiciando um resgate da antiga tradição tupinambá”, exemplifica Baniwa.
Terena concorda que “muitos artistas têm a consciência” de que suas produções são “uma maneira de falar sobre os povos indígenas e suas demandas”.
“Não há arte indígena contemporânea não ligada à causa deles”, acrescenta Duarte. “Ela em si é engajada, vejo uma epistemologia, uma forma de pensar e praticar essas artes que traz o pensamento originário, totalmente conectado à vida, ao ar, à natureza. Não é algo imaginário, abstrato. É conectado. Está nas origens de suas narrativas.”
Para o escritor e ambientalista Kaká Werá, tapuia, as manifestações artísticas consideradas contemporâneas de representantes dos povos originários são a nova roupagem da arte ancestral a partir de formatos compatíveis com a sociedade de hoje.
“A arte indígena é milenar enquanto expressão de suas tradições nos corpos, nas cerâmicas, na arquitetura comunitária, nos entalhes em madeira, nos colares, nos grafismos. Torna-se contemporânea quando seus símbolos e modos de expressão se utilizam de recursos e ferramentas contemporâneas como quadros, telas, livros, espaços culturais”, explica. “Quando acolhe influências de outras artes e se adequa a linguagens diversas.”
Nesse sentido, Werá aponta que essas expressões artísticas colaboram “para um engajamento de causa” porque revelam “os arquétipos das culturas ancestrais com seus sentidos e propósitos”.
Veja em: https://www.dw.com/pt-br/2021-o-ano-em-que-o-brasil-descobriu-a-arte-ind%C3%ADgena/a-60144439
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