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A covid expõe o apartheid sanitário global

Por trás da falta de vacinas, as três leis trágicas da Big Pharma. Não pesquisar doenças de pobres. Patentes, para elitizar os tratamentos. Desencorarjar países de produzir remédios e vacinas. Há alternativas — nenhuma sob lógicas capitalistas

Por François Polet | Tradução: Vitor Costa

Apesar da retórica sobre os bens públicos mundiais, a corrida pelo acesso às vacinas contra o coronavírus evidencia novamente a desigualdade entre as nações no mercado farmacêutico. Além da covid-19, o problema se manifesta em três se manifesta de três formas: no subfinanciamento da pesquisa em doenças tropicais; no sistema de direitos de propriedade intelectual que exclui países em desenvolvimento dos resultados da pesquisa do Norte Global; e na dilapidação das capacidades de pesquisa e produção dos países mais pobres.

Grande alívio na Europa: as primeiras doses da vacina contra a covid-19 estão serão aplicadas. O debate público se concentra sobre os desafios logísticos… e sobre a liberdade individual, sobretudo num setor da população que desconfia de um produto elaborado sob condições extraordinárias. Essa preocupação, comum nos países ricos, se contrapõe às questões dos países pobres, onde a disponibilidade das futuras vacinas está longe de ser uma realidade em futuro próximo. A penúria nesses locais não está desconectada da abundância no Norte: por meio de acordos bilaterais com os laboratórios que abrigam, os governos ocidentais reservaram os primeiros bilhões de doses que serão produzidas: capazes de vacinar várias vezes suas populações.

Lançada em abril pela «aliança da vacina» (GAVI), em associação com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Fundação CEPI1 (1), a plataforma COVAX (Covid 19 Vaccines Global Access) procura ultrapassar a lógica do “cada um por si” destacando as contribuições dos Estados (são mais de 180 que ingressaram na iniciativa) para sustentar a pesquisa e a produção de um grande número de doses de vacinas, para negociar os melhores preços possíveis com a indústria e garantir uma distribuição mais justa das doses entre países e no interior de seus territórios. A Covax estabeleceu um mecanismo de co-financiamento, pelos países ricos, de um bilhão de doses, que serão reservadas aos 92 países mais pobres, em nome do princípio segundo o qual “ninguém estará em segurança até que todo o mundo esteja seguro”. Embora seja muito cedo para avaliar a inciativa Covax, que tem o mérito de existir, já se tornou evidente que sua eficácia será reduzida pelos acordos prioritários que os países rigos assinam em paralelo, com os laboratórios. O montante monetário envolvido nestes compromissos é muitas vezes maior que as somas destinadas por estas mesmas nações ao dispositivo COVAX.

Essa desigualdade no acesso aos medicamentos é apenas um pequeno sintoma de uma posição globalmente desvantajosa dos países do Sul Global na ordem farmacêutica internacional. As origens das dificuldades desses países pobres no acesso aos produtos médicos e farmacêuticos essenciais em matéria de saúde pública são bem conhecidos. Elas tem sido objeto de numerosos relatórios e declarações dentro das organizações internacionais nos últimos 30 anos. As dificuldades manifestam-se em três níveis: na falta de investimento, em escala mundial, na pesquisa em doenças que atingem principalmente os países do Sul Global; na existência de um sistema de patentes que limita as possibilidades de acesso dos países do Sul aos medicamentos; e, ainda que algumas patentes expirem, há a incapacidade de produção dos medicamentos nos países mais pobres.

As doenças tropicais negligenciadas

A OMS soou o alarme em 2003: no mundo, menos de 10% da pesquisa médica dedica-se às doenças que totalizam 90% da mortalidade. Junto das mais conhecidas (malária, tuberculose e hanseníase, encontramos também doenças mais negligenciadas, como a kala-azar/calazar (leishmaniose visceral), a doença do sono (tripanossomíase africana) e a doença de Chagas (tripanossomíase americana), que afetam os países em desenvolvimento mais pobres. Os bilhões de dólares investidos todos os anos na pesquisa e desenvolvimento (P&D) farmacêuticos em todo o mundo são orientados pelos laboratórios para doenças que afetam indivíduos cobertos por planos de saúde (públicos ou privados) com base financeira para pagar valores cada vez mais elevados. A impossibilidade de reduzir as margens de lucro abaixo da escala das exigências de seus acionistas desvia as grandes empresas de farmacêuticos de atender as necessidades de países com orçamentos de saúde limitados.

O problema foi muitas vezes levantado no contexto da Assembleia Mundial da Saúde, órgão decisório da OMS. Desde 1974, esse órgão pede ao diretor geral da OMS para “intensificar as atividades de pesquisa da organização sobre doenças tropicais e para aumentar o esforço para obter mais recursos extra-orçamentarios para esse fim2. Uma resolução que se transformou no ano seguinte na criação do “programa de pesquisa e de formação relativo às doenças tropicais”, com um duplo objetivo: concentrar-se em novos métodos de luta contra essas doenças que sejam, ao mesmo tempo, aplicáveis, aceitáveis e financeiramente suportáveis para os países em desenvolvimento e reforçar a capacidade desses países de colocar em prática, por si mesmos, essas novas técnicas. Ainda que esse programa tenha permitido avanços, sua amplitude limitada não foi suficiente para inverter a tendência: entre 1975 e 2000, de 1400 medicamentos “inovadores” (novas moléculas que obtêm novas autorizações de entrada no mercado), apenas 13, aproximadamente 1%, são dedicadas ao tratamento das doenças tropicais3.

No inicio dos anos 2000, o tema das doenças tropicais suscitou um renascimento de interesse pelo tema, no contexto dos “objetivos do milênio para o desenvolvimento e a emergência do paradigma da saúde pública mundial4 (global health). Em meio à difusão da AIDS, e depois do Ebola, o desenvolvimento de doenças nos países do Sul foi visto como um “risco global”, enquanto novas formas de intervenção, novos atores (ONGs e fundações) e novos modos de financiamento (parcerias público-privadas) prosperaram e reconfiguraram o campo da saúde publica mundial. Dotada de um orçamento maior que o da OMS, da qual ela se torna o segundo financiador, a Fundação Bill e Melinda Gates é um ator central nessa mutação. Sob seu incentivo ou sua participação foram lançadas sucessivamente a Aliança da Vacina (GAVI) (2000); o Fundo Mundial contra a AIDS, malária e tuberculose (2002); a Unitaid (2006); o Consorcio sobre Doenças Tropicais Negligenciadas (2007) e outros.

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