Estas eleições serão decididas pela massa de desamparados, tratados como gado na pandemia que ainda nos espreita
Por: Tarso Genro |Créditos da foto: (Roberto Parizotti/Fotos Públicas)
“O pesar e o prazer andam tão emparelhados
que tanto se desnorteia o triste que
desespera quanto o alegre que confia”.
Cervantes
A violência do Estado nos momentos ou etapas de exceção, não gera somente temor ou neuroses no cotidiano das massas alienadas, mas também promove pulsões históricas. Vastas parcelas da sociedade, ora se dirigem para os supostos momentos de alegria e descontração no mercado das ilusões consumistas, ora se conectam aos espaços do crime organizado, já monopolizado como poder no Estado (autoritário) – ou conectando-se (em rede), pelas milícias digitais.
Nestas milícias paranoicas os militantes podem apoiar os campos de concentração, a terra pode ser plana e Bolsonaro pode ser revelado como o redentor de uma nação fictícia: seu fascismo em compota – sem teoria e sem projeto – não podendo elevar-se a um plano político minimamente coerente, expande-se pelo ódio que, carente para ser filosofia da ação, torna-se pura ação criminosa sem partido.
O e-book “100 anos Psicologia das Massas” (Jaqueline de Oliveira Moreira, Ana Carolina Dias da Silva, organizadoras, Ed CRV, Curitiba 2021) traz um conjunto qualificado de textos sobre a vida e a política na democracia contemporânea, de um ângulo que embora não seja inusitado, não é o usual, nem nas narrativas da luta política, nem nos debates e na crítica da emancipação democrática.
O livro é um vasto painel: psicanálise, psicologia das massas, formação e controle do “espírito” dos dominados, traços de filosofia política, nexos entre dominação e libertação das mentes, o falso direito de “todos possuir” – no enredo que a todos nivela pela mercadoria – compõe o sentido principal do livro coletivo. Nele está o excelente texto “Recordar, repetir e…repetir -as massas e os autoritarismos de ontem e hoje” (do pesquisador Domingos Barroso da Silva), no qual me apoio para as presentes considerações sobre a nossa crise democrática.
No “hiperindividualismo” reinante, combinado com “a ressurreição e o progressivo fortalecimento” de uma postura fascista – de líderes como Trump e Bolsonaro – vem o “esmagamento da dimensão pública pelas coisas privadas”, ao que sucede o desprestígio das instituições democráticas e o “ambiente fértil para desenvolvimento de novas formas de tirania”. Estas novas formas de tirania agora disseminam a cultura da “igualdade” (falsa), pelo mercado, com as reformas que seriam necessárias para que “todos um dia lá estejam felizes”.
As novas formas de tirania se expressam num novo contexto ideológico mundial integrado de forma horizontal – pela base – a partir de um conjunto de indivíduos isolados. Eles atuam sós, ou em pequenos grupos, em redes que não respondem necessariamente aos seus “instintos de classe”: seus movimentos mimetizam também um conjunto de estímulos verticais, “de fora” das suas classes originárias, que são fabricados em série pelos bandidos globais como Steve Bannon.
As dificuldades de comunicação, tanto da esquerda – que sempre é mais solidamente democrática – como da direita tradicional não fascista, que tem principalmente relações contingentes com a democracia, estão assentadas portanto neste dilema: os seus núcleos dirigentes continuam formulando seus comandos políticos compostos de narrativas longas, mas a vida cotidiana toma conta da História todos os dias, com tempos curtos, pulsões em série, moralidades provisórias, fomes rapidamente disseminadas e afetos evanescentes.
Estas dificuldades de comunicação para exercer comando político, no atual estágio da crise é enfrentada de forma diferente pelos dois principais líderes políticos nacionais: um representando os escombros do inconsciente iluminista precariamente adquirido nos nossos curtos períodos democráticos; outro representando o máximo de consciência socialdemocrata adquirida no mesmo período de democracia política.
A vida é provisória e a pulsão do mercado é permanente, como a própria crise, ora fundida na pobreza herdada da democracia social deformada, ora na frieza da república impotente. Por isso, quando Bolsonaro imita com crueldade a falta de ar dos que se preparam para morrer, Lula fala na fome endêmica que se espalha no tempo presente; quando Bolsonaro rosna que torturar é necessário, Lula fala em compaixão e celebra a luz com os coletores de resíduos que o mercado marginaliza; quando Bolsonaro celebra o presente, como se fosse garantida a perpetuação do ódio, Lula fala na coesão social do passado pelas três refeições do dia.
Na parte do artigo em que o autor aborda a “Insegurança, precariedade e medo, o sujeito reduzido a indivíduo e acolhido pelas massas”, o autor faz um destaque importante: o significado profundamente humano da “coesão partir dos medos, ódios e ressentimentos compartilhados (através dos quais) afetivamente unidos (eles) conseguem conferir alguma estabilidade à existência, que sentem se volatilizar em razão de uma liberdade que, imposta segundo a cartilha neoliberal, mais equivale a desamparo”.
Talvez quando o conjunto da esquerda entender que estas eleições serão decididas pela massa de desamparados – tratados como gado na pandemia que ainda nos espreita – possamos compor uma unidade, não só na resistência, mas para governar, respondendo às mensagens fortes e curtas de quem não respira, seja pelo vírus, seja pela fome. Lembremos que Bolsonaro, com toda a sua insanidade, vocação para a mentira e mensagens de ódio, ainda é ouvido por 40% da população. Grande parte deles “desamparados” que ele mesmo criou, ajudado pelos “gentlemans” da escolha difícil.
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