Os preços dos alimentos disparam. Fantasma da carestia, vivido por milhões na década de 70, durante o choque do petróleo, retorna. Saída requer enfrentar o agronegócio. Água e comida não podem ser reféns do mercado…
por EcoDebate
A água e a comida são dois bens essenciais para a vida de qualquer espécie viva da Terra. A história da humanidade é a história da luta pela sobrevivência e pela segurança alimentar. Desde os tempos bíblicos a fome assusta as diversas populações nacionais. Na Revolução Francesa o povo foi para as ruas dizer que não tinha pão para comer e a alienada rainha Maria Antonieta deu como alternativa comer brioche. Historicamente, a fome está sempre associada à revoltas e revoluções. Aumento da carestia é sempre um alerta.
O Índice de Preços de Alimentos da FAO (FFPI) é uma medida da variação mensal dos preços internacionais de uma cesta de commodities alimentares. Consiste na média de cinco índices de preços de grupos de commodities ponderados pelas participações médias de exportação de cada um dos grupos no período 2014-2016. Ele é um importante indicador da segurança alimentar no mundo.
O FFPI da FAO, em valor real, teve um curto pico acima de 120 pontos em meados da década de 1970, em decorrência do primeiro choque do petróleo, mas atingiu os valores mais baixos da série entre 1985 e 2005. Contudo, a perspectiva é de alta no século XXI. O preço dos alimentos caiu no início da pandemia da covid-19, mas voltou a subir a partir de maio de 2020. O FFPI teve média de 107,5 pontos em dezembro de 2020, valor bem superior aos 91,0 pontos de maio. Para o conjunto do ano de 2020 o valor foi de 97,9 pontos, bem acima dos 91,9 pontos de 2016, embora abaixo do recorde de 120 pontos (em termos reais) de 2011. O preocupante é que os preços voltaram para o patamar de 120 pontos.
A fome é uma constante na história humana e seria ilusão imaginar que o mundo estaria livre desta ameaça. O maior volume absoluto de óbitos provocados pela desnutrição aconteceu na década de 1870, quando 20,4 milhões de pessoas morreram por inanição no mundo. Foi nesta época que foi criado o hino “A Internacional” que foi composto em 1871, por Eugène Pottier (1816-1887), que havia sido um dos membros da Comuna de Paris. Os primeiros versos do hino diz: “De pé ó vítimas da fome; De pé famélicos da terra”. Estes versos refletiam a situação daquele momento. A carência de alimentos era uma realidade que ceifava milhões de vítimas.
Na década de 1880 o número de vítimas caiu para menos de 3 milhões, mas voltou a subir para quase 10 milhões na década de 1890. Surpreendentemente, o número de óbitos por fome diminuiu na década de 1910 – quando houve a Primeira Guerra Mundial – mesmo sendo o número de 2,6 milhões ainda muito elevado. Na década de 1920 a fome cresceu muito novamente, atingindo 16 milhões de vítimas fatais devido, principalmente, à situação da União Soviética e da China. Na década de 1940 – quando aconteceu a Segunda Guerra Mundial – a fome bateu todos os recordes do século XX, com 18,6 milhões de vítimas. Na década de 1960 a fome voltou a assustar, mas principalmente pela grande crise provocada pelos equívocos da política de “Um grande salto para frente” da China. Passado a grande tragédia na China na década de 1960, o número de vítimas da insegurança alimentar diminuiu muito no mundo nas décadas seguintes, sendo que o número de mortes atingiu o menor nível na década passada (2011-20).
Porém, as conquistas do último século podem não durar para sempre. O pandemônio econômico provocado pela covid-19 tem desarticulado a cadeia de produção de vários produtos e tem gerado aumento do preço global da comida, devido a 5 fatores: aumento dos custos de produção e transporte; desorganização da cadeia produtiva global (gerando gargalos na produção e distribuição); aumento do preço do petróleo; danos causados pela crise ambiental; e desvalorização cambial.
O fato é que está cada vez mais difícil produzir alimentos de forma sustentável. O relatório “Climate Change and Land”, do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU (08/08/2019) – que trata da conexão entre o uso da terra e seus efeitos sobre a mudança climática – mostra que existe um efeito perverso de retroalimentação entre as duas coisas, pois a produção de alimentos aumenta o aquecimento global, enquanto as mudanças climáticas decorrentes ameaçam a produção de alimentos.
O relatório do IPCC mostra, de forma inquestionável, que o crescimento da população mundial e o aumento do consumo per capita de alimentos (ração, fibra, madeira e energia) têm causado taxas sem precedentes de uso de terra e água doce, com a agricultura atualmente respondendo por cerca de 70% do uso global de água doce. Adicionalmente, o aumento da produção e consumo de alimentos contribuíram para o aumento das emissões líquidas de gases de efeito estufa (GEE), perda de ecossistemas naturais e diminuição da biodiversidade. O sistema alimentar responde por cerca de 30% de todas as emissões de gases de efeito estufa (GEE) e 80% do desmatamento global.
Trabalho acadêmico publicado na prestigiosa revista Nature Sustainability (Gerten et. al, 2020) mostra que o sistema alimentar mundial atual pode alimentar apenas 3,4 bilhões de pessoas sem transgredir os principais limites planetários, de acordo com uma análise do sistema agrícola global. Todavia, a reorganização da produção de alimentos – alterando a forma de cultivar e modificando a dieta cotidiana predominante – possibilitaria alimentar até 10 bilhões de pessoas de forma sustentável.
Os autores dizem categoricamente que “Não devemos continuar na direção de produzir mais alimentos às custas do meio ambiente”. Utilizando o arcabouço teórico das Fronteiras Planetárias, a equipe de Gerten analisou os quatro limites que são relevantes para a agricultura: não usar muito nitrogênio, o que causa zonas mortas em lagos e oceanos; não tirar muita água doce dos rios; não derrubar muita floresta; e manutenção da biodiversidade.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/a-nova-onda-de-fome-e-a-disputa-pelo-comum/
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